quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Todo menino é um rei

Eu com a turma da Rádio Araçá de Mari: Manuel Batista, Ricardo Alves e Carlos Alcides, em recente encontro na Rádio Tabajara

Meu compadre velho Ricardo Alves, o Ceguinho, foi quem me informou que um tal de Reginaldo apareceu na Rádio Comunitária Araçá me procurando, em Mari. Disse que me conhecia desde quando era garoto. Lembro de ter conhecido três reginaldos em Mari: um filho de Dequinha, colega ferroviário, outro irmão do meu compadre Biu Apaga Luz e o terceiro era um rapaz militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Pela descrição do Ceguinho, não se tratava de nenhum dos três, apesar de que se sabe que não se deve levar muita fé em testemunho de cego, rogando perdão aos politicamente corretos pela piada infame. 
Ricardo deu o número do meu móvel para o rapaz, ele acabou me ligando. Surpreso, lembrei que se trata de um meninote que apareceu na estação do trem onde eu trabalhava, magrinho, faminto e analfabeto. Levei o menino pra casa, descobri que era filho de agricultor e não conhecia uma escola. Dona Ivana, que era professora, levou o garoto para estudar no Grupo Escolar Augusto dos Anjos. Ele passou a ser meu office boy. Era um menino decente, filho de família pobre e digna, sem terra e sem pão, integrante desse contingente imenso dos deserdados, trabalhadores das plantações de fumo, roça e abacaxi, semi-escravos do latifúndio.
O irmão de Reginaldo também apareceu para conhecer nossa família. Onde come um, comem dois, diz o ditado popular desse povo tão acolhedor que é o nordestino. Ficaram por lá um bom tempo, até que eu me mudei para João Pessoa. Nessa mudança, dei de presente aos meninos o meu cachorro Pitu, um vira-lata preto e branco, muito esperto. Achei que aquela família de agricultores seria digna do meu cãozinho, um povo tão cordato e honesto.
Quase vinte anos depois, me liga Reginaldo:
 --- Seu Fábio, que emoção! Sou eu, aquele menino magrinho que o senhor ajudou, comprou lápis e cadernos pra eu estudar. Hoje tenho 31 anos, casei, moro em Cruz das Armas, trabalho fazendo portão de ferro. Qualquer dia vou na sua casa. Nunca me esqueço do senhor e de sua mulher, tão bondosos, que me ajudaram tanto na minha infância.
Já é o segundo moleque com quem me relacionei em Mari que me encontra este mês. O outro foi um ex-pupilo de minha escolinha de futebol que mora hoje em Sapé. O fato é que sempre fico impactado com esses lances do destino, do acaso. Encontrar alguém que reconhece seu benfeitor, a lembrar que “a bondade é uma linguagem que o surdo consegue ouvir e o cego consegue ler”, conforme escreveu Mark Twain. E saber que aquela criatura driblou a miséria, conseguiu estruturar uma vida digna.

Esqueci de perguntar por Pitu, que já deve estar no céu dos cachorros há muito tempo.  A vida segue.


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