segunda-feira, 15 de setembro de 2014

A burrinha de Balaão e outras jumentalidades


Um site bíblico comenta que o caso da burrinha de Balaão é um dos milagres mais fantásticos do Velho Testamento. Resumindo: o Rei Balaque mandou Balaão amaldiçoar o povo de Deus em Moabe. No caminho, Deus envia seu Anjo, que é Jesus personificado em Anjo, com a espada desembainhada, pronto para matar Balaão. Como todo mundo sabe, os animais têm o dom de perceber fenômenos sobrenaturais à sua volta. A burra viu o Anjo e tentou avisar ao Balaão do perigo que corria. O ignorante Balaão, pensando que sua fiel mula estava empacando, soltou o chicote nas ancas do pobre animal. Cansada de levar pontapés, a burrinha falou, inspirada pelo próprio Deus:
--- Que te fiz eu, que me espancasses três vezes? Porventura não sou tua jumenta, em que cavalgastes desde quando eras menino de colo? Já te fiz alguma coisa, por acaso te dei algum coice durante esse tempo todo?
E por aí seguiu o diálogo entre Balaão e sua jumenta, resultando que o bicho acabou por salvar seu dono da espada do Anjo, e tudo acabou bem.
Essa história de Balaão me veio à mente conversando com meu compadre Jacinto Moreno, autor de um filme sobre o milagre da aparição de Nossa Senhora de Fátima a uns pastores em Portugal. O filme se chama “Cova da Iria”. Moreno esteve recentemente em Portugal para mostrar seu filme em um festival de vídeos.
Eis que estou sentado no banco da praça João XXIII em Jaguaribe, com cinco livros que iria levar para doar em uma biblioteca local, por aquele acaso que precede os milagres, abri um exemplar de “Viagens na minha terra”, do português Almeida Garret, na página 174, justamente no capítulo que conta a história de Santa Iria, muito popular em Portugal.
Resumindo: a milagrosa Santa Iria – Santa Irene – que deu o seu nome a Santarém, era freira num convento beneditino nos meados do século VII. Um sujeito por nome Britaldo apaixonou-se pela bela freira. O amor não correspondido acabou por prostrar o jovem em leito de morte, no que foi acudido e consolado pela freira caridosa. Eis que o monge Remígio também se apaixona pela sedutora noiva de Cristo, mais uma vez sem que a inditosa irmã venha a sentir os ardores do amor. Com raiva da insensibilidade da futura Santa, o monge preparou uma bebida endiabrada. Ao tomar o chá amaldiçoado, a freirinha começou a mostrar sinais de gravidez, sendo que era tudo invenção do Diabo para desencaminhar a imaculada jovem. Com entojo e o bucho pela boca, Santa Iria não aguentou os insultos e o desrespeito da mundiça, que povo fofoqueiro e falador da vida alheia sempre existiu. Desesperada, lançou-se ao rio Zézere. Os monges foram encontrar seu corpo no leito do rio, coberto por fino alabastro, obra das mãos dos anjos. A Rainha Santa Isabel fez fervorosas orações na beira do rio, então suas águas se abriram como o mar Vermelho de Moisés. Ela então pôde entrar rio a dentro sem se molhar, com toda sua corte, incluindo pedreiros que passaram muitos dias reformando o mausoléu de Santa Iria. “O rio esperou com toda paciência que os pedreiros acabassem, e quando viu que poderia continuar a correr, deu aviso, retiraram-se todos, tornaram-se a juntar as águas e o túmulo da santa ficou por cima delas”, conforme Almeida Garret na obra citada.
Em verdade vos digo que toda essa conversa de burra falante e outras coisas fantásticas vai em função de comentário do meu compadre Onaldo Rodrigues de Almeida. Ele me enquadrou como quadrúpede por ter citado Albert Einstein no Faceboo: “A palavra Deus é, para mim, nada mais do que a expressão e o produto das fraquezas humanas, e a Bíblia uma coleção de lendas honradas, ainda que primitivas, e que de qualquer maneira são bastante infantis. Nenhuma interpretação, por mais sutil que seja, é capaz de (para mim) mudar isso.” No que Onaldo exclamou: “Quadrúpede, de onde vem tua capacidade e teus dons?” Desconfio que tem algo a ver com a sensibilidade, a humildade, a ousadia mansa, a sabedoria e isenção, o tormento dos pequeninos e maltratados, feito a própria burrinha de Balaão. Quando conseguem falar, e melhor, pensar, fazem a revolução. 

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