sexta-feira, 16 de maio de 2014

Eu também sou “Paraíba de obra”


Zé Dumont em "O homem que virou suco"


“Acredita que o safado do Berlusconi me soltou uma cantada de ‘paraíba de obra’? (Diário da Dilma, revista Piaui)”

Dilma inaugurou obra no sertão da Paraíba, mas mandou barrar os repórteres paraibanos. Talvez não quisesse contato com os “paraíbas de obra”.  Esse diário da Dilma é uma obra de ficção, um trabalho de humor.  Demonstra, entretanto, o preconceito que os do sul/sudeste conservam contra os nordestinos, particularmente os paraibanos.  

Em 2009, fui ao Rio pela primeira vez, participar de um seminário sobre rádios públicas e comunitárias.  À noite, uma turma de nordestinos foi comer pastel e tomar birita nos botecos da praça Tiradentes.  Tinha cabra de Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Bahia. Encontramos um barzinho onde poderia ser degustado o mais tradicional chambaril, com sarapatel, cuscuz, cabrito, mocotó, baião de dois e cozido. Era uma cozinha nordestina, com certeza. O dono, paraibano de Sumé, gente fina, com muitos anos de vivência no “sul maravilha”, acolheu os patrícios com aquela cordialidade dos nossos matutos.  

Certa alta hora, adentrou ao boteco um carioca já um tanto chumbado e começou a destilar sua tese racista, segundo a qual o Rio de Janeiro estava um horror de violência por causa de Leonel Brizola que escancarou as portas da cidade para imigrantes do Nordeste.  Menino, isso foi um rastilho de pólvora no ambiente com cheiro de carne seca e aguardente da boa. O cara quase foi linchado, mas tudo verbalmente. Ninguém puxou faca peixeira, mas o alarido foi geral.  Até eu, que não sou de briga, achei que não deveria deixar barato ou de menos esse manifesto racista do amarelo.  

--- Olhe, seu menino, pois eu acho que os nordestinos são responsáveis diretos pelo progresso deste lugar, porque temos coragem de trabalhar, somos honestos e temos em nossa cultura o maior sentido de humanidade.  Porque, se fosse depender de vocês, cariocas, esta cidade seria uma merdinha qualquer, já que vocês são preguiçosos, só sabem balançar a bunda nas quadras das escolas de samba, fumar maconha e pagar de malandro. 

Isso eu disse nas fuças do sujeitinho, devidamente protegido por mais de dez paus-de-araras. Ele ali mesmo enterrou sua tese, pediu desculpas e pegou descendo.  Daí eu fiquei matutando que esse negócio de racismo é mental, um subproduto de nossas ruindades encobertas, inconscientes. De toda forma, eu e os demais companheiros ali, naquele bar, adotamos uma atitude preconceituosa em relação ao carioca, quando partimos para desqualificar até moralmente esses brasileiros nascidos no sudeste. 

Tem um cara que vale a pena empregar o termo genial na arte de interpretar, o paraibano Zé Dumont. Ele fez uma personagem arretada no filme “O homem que virou suco”, um peão de obra nascido na Paraíba, imigrante sem eira nem beira, poeta popular perdido na selva de pedra de São Paulo. Com bravura e poesia, o cara faz a vez de um Dom Quixote contra os moinhos de vento do preconceito e da exploração capitalista. Antológica a cena em que o poeta está vendendo seus cordéis na rua, quando é interpelado pelo fiscal da Prefeitura:

--- Paraíba, se manda daqui, que tu não tem licença pra comercializar na praça. Ta pensando que isto aqui é tua terra? Isto aqui é São Paulo!

--- Grande merda! – desdenha o poeta.

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