quarta-feira, 21 de maio de 2014

A Justiça e os orixás

Foto de escrava feita por Marc Ferrez

Um juiz determinou que os cultos de origem africana no Brasil não são religiões. Para o meritíssimo fundamentalista, apenas sua religião católica pode ser considerada sistema cultural de crença respeitada e abrigada pela lei. O resto é seita.

O caso me lembra um processo antigo que correu nos tribunais da Paraíba em 1826, envolvendo uma escrava de trinta anos chamada Gertrudes que vendia frutas e verduras num tabuleiro no Ponto Cem Réis. A escrava era propriedade de um sujeito por nome Carlos José da Costa. A moça conseguiu comprar a própria liberdade pela metade do seu valor, sob condição de prestar serviço ao patrão por tempo indeterminado para quitar o restante da dívida.

Acontece que seu proprietário devia até os cabelos da cabeça. Vivia metido em jogo de baralho e tinha débito até com o padre da paróquia. O frei carmelita João da Encarnação não quis conversa, queria receber sua parte. Para isso, entrou na Justiça pedindo o direito de vender a escrava em praça pública para ressarcir a dívida do Carlos José. A luta na Justiça durou de 1828 a 1842, que já naquela época a Justiça era lenta e pendente para os poderosos. Uma escrava contra o Clero. A quitandeira Gertrudes chegou a ser presa, entretanto, não baixou a cabeça, foi à luta, não se posicionou de forma passiva, mesmo sendo um ser escravizado numa sociedade altamente preconceituosa.


No final, Frei João da Encarnação acabou perdendo a causa, e Gertrudes com seus filhos não tiveram a humilhação de ser vendidos como bichos brutos no mercado. Venceu Xangô, o orixá da justiça. A religião oficial era a Católica, defendida pelo Frei. Do lado da escrava, os seus orixás vindos da África, ancestrais divinizados representando as forças da natureza. Ainda hoje essa briga corre nos tribunais. Não querem reconhecer a religião dos escravos. Hoje, como ontem, a luta por liberdade de consciência, pensamento e religião faz parte da própria luta pela liberdade individual.  

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