Dona
Nelza Cabral viveu sob o crivo da modernidade em uma cidadezinha acanhada e
preconceituosa da Paraíba por nome Itabaiana do Norte. Lia muito e gostava de
desenhar. Pintava quadros elogiados pelo Coronel Raul Geraldo de Oliveira,
mestre da pintura.
Faz
meio século que dona Nelza morreu. Essa pessoa iluminada pelo talento era, por
assim, dizer, uma figura além do seu tempo. Uma estrela brilhante a ofuscar os
medíocres de sua cidadezinha.
Não
conheci dona Nelza, minha sogra, mas soube que era uma pessoa simples, sem
aquele comportamento pequeno burguês um tanto ridículo, próprio das elites
interioranas. Seu marido ocupava importante cargo na diretoria da maior empresa
particular da cidade, era um homem refinado. Dona Nelza vivia o mais
discretamente possível. Não gostava dos bailes elitistas, das ostentações
vazias de uma sociedade ornamentada pelo falso brilho da opulência. Apreciava o
rio Paraíba, tinha por hábito tomar banho nos poços do rio e desenhar. Desde
criança. As coisas simples que ninguém via ou valorizava, a poesia da vida
oculta a fazia viver quieta, pelos cantos. Era quase uma incompreendida, como
todo artista.
O desenho
acima representa a ponte ferroviária de Guarita sobre o rio Paraíba, rabiscado
em lápis grafite numa folha de caderno pautado escolar. Foi um ensaio de dona
Nelza quando mocinha, em um dos piqueniques que se costumava fazer no rio
naquela época. Pelos nossos cálculos, este desenho tem mais de setenta anos.
Uma relíquia guardada pela filha Geovana, que hoje mora na Bahia.
Visitei
esse recanto do rio, recentemente. Parece que estancou no tempo, aquele sítio
do lado esquerdo do Paraíba, outrora centro da nossa indústria coureira, hoje
extinta. A decadência econômica congelou o distrito de Campo Grande. Casas
velhas abandonadas, campos vazios, ruínas. Com o vento que corre nas margens
desertas do rio, sopram as lembranças daquela juventude que fazia piquenique
com o futuro maestro Sivuca, e no meio da algazarra juvenil a frase altiva e o
alvo riso da menina-moça Nelza, no nascimento de suas invenções artísticas.
Nelza Cabral (à esquerda, com rosa no cabelo) ao lado do menino Sivuca em 1945, em piquenique |
Ivana e Fábio
ResponderExcluirLer esta linda crônica, emocionou-me. A saudosa Nelza, boa vizinha e divertida amiga, encantava-me, na minha adolescência, com seu conhecimento e histórias que contava na nossa calçada. Em uma daquelas noites quando Itabaiana tinha pouca luz, e se podia contemplar o belo céu estrelado, Nelza deu nome às estrelas e a todas as constelações. No dia seguinte corri para localizar tudo aquilo no meu Atlas Escolar. Nunca esqueci.
Margaret
Belíssima e merecida homenagem, Fábio. Minha mãe estudou pintura em tecido com ela e ainda guarda uma amostra do que aprendeu; os botõezinhos de rosas parecem vivos de tão perfeitos. Sem dúvida, Dona Nelza era uma grande artista, com uma sensibilidade impressionante, super criativa, uma mulher admirável.
ResponderExcluirEu era ainda muito criança nesse tempo (dois aninhos), mas lembro bem dela e até do cheiro da tinta misturada com vinagre e aspergida com uma escovinha e uma peneira bem fina sobre a barra das toalhas de mesa, previamente decoradas com desenhos recortados em papelão e presos por tachinhas, para dar um efeito bem interessante quando retirados. A propósito, lá pelos 11 anos, decorei algumas camisetas com essa técnica. Boas lembranças.