Eu e a Ala Ursa
A felicidade que venceu o medo
Adeildo
Vieira
Eu
devia ter apenas uns quatro anos de idade quando fui abordado, bem na calçada
da minha casa, em Itabaiana, por uma Ala Ursa em busca de dinheiro. Era domingo
de carnaval e eu estava nos braços de meu pai que, pra minha felicidade,
aliviou-me do pânico que me deixou em soluços. Naquela tarde, em plena calçada
onde eu repousava minha inocência, nada que envolvia aquele personagem
carnavalesco conseguiu ser mais marcante do que seu olhar congelado de urso
preto fitando o quarto escuro do meu coração, lá onde morava o meu medo. Este é
um daqueles lampejos de lembrança que recortam cenas da nossa infância e as
penduram feito quadros na parede desbotada da memória.
O
próximo recorte de lembrança envolvendo Ala Ursas projeta meus onze anos,
quando, pela primeira vez, corria atrás de um desses bichos até conseguir
tocá-lo. Desmistificar o monstro que me assustara na infância foi algo
fascinante, uma vitória na batalha contra o medo. Mas devo confessar que atingir
essa glória não foi tão difícil assim, pois pra encarar o feito eu me vesti de
carnaval. Maizena no cabelo e lança d’água em punho, tive ainda em meu favor um
batuque inesquecível que punha o bicho pra dançar junto comigo. O mesmo toque
que domesticava o monstro punha o meu medo pra dançar, acordando uma alegria
inebriante que jamais sairia do meu coração. Hoje conto Ala Ursas pra dormir,
tamanha é a minha afeição por essa alegoria de felicidade popular manifestada
nos carnavais. Também recorro às Ala Ursas pra acordar uma infância que soube
perder o medo de ser feliz.
Hoje,
no carnaval dos meus cinquenta anos, fico encantado ao me deparar com esses
personagens cheios de carnaval pelos cantos da cidade que adotei pra foliar
meus dias. Eles andam pelas ruas de João Pessoa, mas há alguns anos são
convidados pra desfilar na passarela do nosso “carnaval tradição”, alcunha dada
ao evento que ainda preza pela alma carnavalesca que se manifesta no coração
dos pessoenses.
As
Ala Ursas de hoje agregaram novos valores que as tornaram ainda mais
peculiares. É um caso em que o avanço do tempo ainda não contaminou essas
manifestações com modismos que as descaracterizassem. As Ala Ursas ainda estão
cheias de povo, com sua criatividade e seu humor irreverente. Acho, inclusive,
que precisam permanecer na rua, lugar onde nasceram e reinam absolutas. Os
novos blocos trazem personagens de personalidades bem definidas, produzindo verdadeiros espetáculos de rua pro deleite dos
amantes de um carnaval popular a serviço da felicidade criativa do povo.
Mas
o que mais me chama a atenção hoje é a imensa riqueza dos batuques criados para
essa nova geração de manifestações carnavalescas. A agregação de novos instrumentos aliada a uma
pluralidade de matrizes percussivas produzem uma complexidade rítmica e
timbrística singular e impressionante. Vale a pena ver, de preferência nos
bairros onde circulam, pra acompanhá-los ao som de um batuque que nos põe em
contato direto com aquela alegria frenética que descobri depois de vencer o
medo.
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