quarta-feira, 8 de abril de 2015

Noites de fogo


Febre intermitente e dor de cabeça constante nesses últimos dias. Sucumbindo às flagelações da doença, dorme-se mal, aos pedaços. Cada trecho de sono, um pesadelo qualquer para adubar a agonia.

Hoje, acordei da última fatia de adormecimento agoniado lembrando de uma quadrinha que compus no torpor. Estava eu numa espécie de loja decadente, entre objetos velhos, empoeirados. Eu estava procurando um presente para alguém. A dona do bazar, uma senhora vestida de negro, cabelos brancos e ar digno, me aconselha: “A vida te dará poucos presentes; se queres uma vida, é preciso que roubes”.

Daí meu forte impulso de sequestrar um objeto qualquer daquele lugar tão sem nada. Umas bolsas de mulher fora de moda, vidros de perfumes vazios, caixinhas de música sem bailarina e sem som, revistas antigas. Lá fora, um esgoto a céu aberto. Da janela se via um cão farejando vermes na lama.

Saí dali. Lá fora, a unidade da miséria. Casas decadentes, ruas tortas, gente derrotada e agonizante. Entrei numa taberna escura e escrevi no caderninho de notas que havia roubado da lojinha desguarnecida:

Ao fim e ao cabo
O pão da missa
É o mesmo pão
Do pobre diabo?

Outros versos esqueci. Depois, me misturei entre o populacho doente e acordei suado.

Meu virulento estado talvez esteja no seu apogeu. Geralmente, esses ataques duram uma semana completa. Pelo menos não é gripe, nem meningite ou dengue. É só aquela sensação de que você não presta pra nada, um inútil sem condições de raciocinar, de ler, ver TV ou ouvir música. Nos delírios da febre, pode ser que saia uma quadrinha ou inspiração qualquer nesses sonhos lamentáveis das letargias. Prostração, cansaço, noites em claro, até dá vontade de ir ao médico, mas, pra que? O diagnóstico é o de sempre: virose. Eu, sendo o doutor, inventaria outro nome, pra despistar. Criaria um nome em latim para essa doença comum. Todo mundo agora, no mundo da medicina, é viroseologista. Especialista em virose, uma doença amplamente abrangente. O remédio é o mesmo: repouso e hidratação. O que fazer com o cérebro que virou papa, ninguém sabe. Não desejo a ninguém, mas se quiserem saber o que é bom pra tosse...



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