Na peça Rei Lear,
Shakespeare conta que os conselheiros da Corte procuraram o monarca,
desesperados: “Majestade, vai acontecer uma catástrofe! Nossos astrólogos estão
prevendo a colisão de um cometa imenso com a terra”. O velho e experimentado
rei pedra de gelo estava pedra de gelo ficou. “Peço que vocês não me perturbem
com eventos sobre os quais não tenho nenhum controle”. Dizem que o dramaturgo
inglês escreveu a peça durante seu isolamento da peste bubônica no verão de
1606. A peste matou 10% da população de Londres.
Pensei nisso
aqui no meu isolamento, decidindo por ouvir o mínimo possível de notícias do
exterior. Outra abstração: como essa pandemia mudará a vida de cada um?
Sentir-se íntimo da morte provoca obsessões em pessoas fragilizadas
mentalmente. Outras se apegam na realidade substancial do espírito. Meu vizinho
ouve missa e reza dia e noite. E depois? Como ficará a cabeça de quem vê o
corpo do seu semelhante como terror e perigo de contaminação? A ideia de
igualdade, será que sai fortalecida?
Para relaxar,
escuto velhas canções de minha geração. Tenho vontade de desenhar, rabiscar
umas figuras. Lembro de alguém que é artista e vive limitando seu talento, sem querer
produzir. Poucos dias de isolamento, já se tem ideia do estrago que o
coronavírus vai causar no plano psicológico. Até a medicina anda brincando de
cabra cega com o vírus. Por arte do azar, o Chefe da nação mal conhece seus
limites funcionais e pede ao povo que forneça carne fresca para os agentes
infecciosos.
Minha rua fica
de frente a uma pracinha chamada João XXIII, na comunidade Jardim Glória.
Ontem, crianças brincavam na praça, vigiados de perto por um senhor. Veio-me à
mente um grupo de filhotes e o macho cuidando da cria na floresta repleta de
predadores, sob as ordens da fêmea alfa. O citadino cuidador confiando no seu
sistema imunológico para espantar o vírus e, por tabela, defender seus descendentes.
Tem uma
técnica de natação onde a pessoa flutua passivamente, fazendo-se de morto. Sem
pânico, sem medo. Não temos a quem reclamar. Apenas suspendemos o fluxo da vida
cotidiana e deixamos de fazer as porcarias comuns: poluir e matar. Um milhão de
espécies animais e vegetais estão para ser extintos por obra e graça dos seres
humanos. Ecossistemas e populações desaparecem a uma velocidade nunca vista. O
planeta dá o troco.
Praça João XXIII |
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