sábado, 21 de março de 2020

A quarentena e o pé de imbaúba



“Isolamento é uma situação que pode convocar os nossos fantasmas para a gente bater um papo com eles e resolver assuntos pendentes.” - [Sigmund Freud (1856-1939), médico psiquiatra austríaco criador da psicanálise].


Imbaúba é uma planta que serve para fazer chá para hipertensos e é a comida do bicho-preguiça. A plantinha nasceu no pé do muro no fundo do quintal e só percebi depois do segundo dia de isolamento. Dá-se um nome para essas plantas que nascem nos locais mais improváveis, porque a natureza insiste em sobreviver, vide o vírus da moda. São chamadas de inço. Como tenho o hábito de deturpar informações, igual a todo jornalista, atribuo o brotar dessa semente de imbaúba ao pássaro emissário do deus grego Quelone, representante da indolência. O passarinho defecou a semente no meu quintal cimentado e eis a imbaúba vicejando para me lembrar que a ociosidade forçada pode ser produtiva e um exercício de autocrítica, reflexão, aprofundamento nas coisas aparentemente banais e estudos correlatos. Estou na fase de inclinação para essas pequenas descobertas nos monturos e fundos de gaveta. Tentando desconsiderar um pouco as opiniões tantãs, prejulgamentos, afirmações preconceituosas, interpretações dúbias, invasão da intimidade e outras idiotices cruéis das redes sociais.

Estou tentando organizar um quarto sobrecarregado de livros, pastas, entulhos em geral. Consultores garantem: esses ambientes atraem energia estagnada. Pilhas de papéis antigos que vão ao teto. Se o isolamento espichar até setembro, como ameaçam as autoridades sanitárias, talvez termine a tarefa.

Na net tem um monte de kit faça-você-mesmo para organizar arquivos mortos. Falando em mortos, comunico que passei a usar o melhor da televisão, que é o botão de desligar como dizia Stanislaw Ponte Preta. O meu vizinho pirado passa o dia todo ligado, ouvindo missa na TV e rezando. Ele garante que tem o escudo de Deus para proteger do vírus, mas não se garante pra sair de casa um palmo. Quase que me vejo assim numa espécie de reality show macabro. Ninguém quer ser eliminado. Tutoriais ensinam a sobreviver na guerra contra o vírus. Evitar riscos previsíveis. O melhor lugar pra se esconder é dentro de si mesmo e reinventar situações cotidianas, desrotinizar a rotina.

Voltando à imbaúba, a plantinha me faz revisitar o absurdo de nossa realidade. Ela não tem chance alguma de prosperar naquele ambiente, mas seu dever moral e cívico e patético natural é germinar, botar a cara ao sol e esperar seu predador, o bicho-preguiça que jamais virá. Fantástica a passeata de jovens zombando do coronavírus numa cidadezinha brasileira. Vi no Facebook. Com direito a carro de som e apoio de professores. Parece que se trata de uma manifestação a favor de Bolsonaro que garantiu não ter medo de “uma gripezinha”. Olhos, narizes, bocas, risos fazendo a cena da insustentável leveza da imbecilidade. A imbaúba e o grupo de jovens bolsonaristas têm um elo em comum: vivem situação limite e inexplicável para eles mas não têm angústia nenhuma porque lhes falta consciência do real. Me vem à cabeça uma piada antiga da sessão de achados e perdidos onde toda manhã a funcionária pergunta aos gritos para um grupo de pessoas: "quem perdeu um cérebro?”. Segue-se, então, um eloquente silêncio.








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