segunda-feira, 30 de março de 2020

Baú do isolamento (4)



Horta de sonhos freudianos

Hoje são trinta de março, dia de Eostre, Deusa da fertilidade e do renascimento na mitologia nórdica. Amanheci regando uma hortazinha de pé de muro no meu quintal árido, coberto de cimento. Mais um dia que começa a gente correndo desembestado atrás do fim dessa quarentena, sem sair do lugar. Longos dias de quietude e marasmo. E inquietude.

Um beija-flor apareceu e amou a viçosa flor do maracujá por exatos três segundos. O bastante para ele abastecer-se de néctar e atingir níveis de felicidade que só quem se agitou nesses radiantes momentos infinitesimais de bem-aventurança pode avaliar. Esses bichinhos acho que conseguem oscular a menina dos olhos de Deus. Amanheci tentando me sentir lírico para afastar o ácido desses dias corrosivos.

Amanheci assistindo “O poço”, um filme de terror, metáfora supra violenta sobre a sociedade de classes e a solidariedade. Recomendo, principalmente nesses momentos em que precisamos pensar nos outros, nos que nada têm e estão expostos ao coronavírus. Apesar das crueldades de gente como esse Capitão e seus colegas de classe, ainda vigora o desejo de continuar dançando à beira do abismo do poço, com a confiança e a fantasia de que a mensagem chegará ao primeiro piso.

No mais, é manter a estabilidade emocional com leitura, música, arte e exercícios físicos, conforme ensina o professor Ivaldo Gomes, ressaltando que essas disciplinas curriculares são as menos valorizadas na escola e que aparecem agora como a melhor forma de suportar a quarentena.

O sábio chinês Chuang-tsé sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, se perguntou se ele mesmo não seria um sonho da borboleta. Entenderam? Eu também não, mas pressuponho que seja algo ligado à nossa fragilidade enquanto seres humanos e o desejo sutil de viver outras realidades. Eu queria ser aquele beija-flor que beijou a flor do maracujá.


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