Jamais na história dos povos
isolados se viu tanta aflição como a do elemento que acorda pela manhã e corre
para a torneira, conferir se tem água. Medo de que a água não apareça e
confirme seu temor de que a civilização acabou. Outro refrigério é o barulho do
motor do caminhão do lixo nas madrugadas e o ruído de um jornal atirado no
jardim. Sentimento de insegurança e vulnerabilidade. Inquietação que vai
aumentando durante o dia, no transcorrer dos noticiários das crises sanitária, econômica,
social e política derivadas dessa doença. No manual de vigilância e controle do
vírus não consta remoção de um vetor poderoso, o próprio cara que deveria comandar
o combate à mazela. Briga desigual, tipo meu Auto Esporte jogar contra o
Barcelona com menos três e o goleiro míope.
Na maré da instabilidade, os
povos isolados e espertos já perceberam a chegada de um aliado impensado: o
poderosíssimo grupo de comunicação da família Marinho. Eles devem ter seus
motivos para abandonar o barco desastroso do capitão Caverna, incentivos bem
menos nobres do que se pode imaginar. Na TV principalmente, sangram o aprendiz
de ditador sem piedade, aos poucos, programando cuidadosamente os picos de
interesse do grande público, a estratégia de editar as falas e o fluxo das
notícias. Têm longa prática e vivência nesse tipo de fuzilamento midiático,
desde João Goulart. O capitão Caverna fia-se na estupidez do seu rebanho e
sonha com o golpe.
Enquanto isso, o elemento
zanza pela casa, arrastando sua perna reumática e sua ansiedade, sentindo-se
alvo. Sabe aquele desconforto de estar na mira do tiro? É que sou do time de
risco, a galera que tem o sistema imunológico envelhecido. Eu imagino os fungos
e vírus tomando conta do meu corpo, crescendo e prosperando nesse ambiente
agradável, quente e rico em nutrientes. Penso essas coisas mórbidas porque
estou só, vivendo uma ficção futurista catastrófica em filme B, fazendo
figuração de alto perigo.
Pego aleatoriamente um livro
de poemas na minha biblioteca. Pádua Fernandes, um cara cujo trabalho eu não
conhecia. Inconformismo e fé, ao mesmo tempo e paradoxalmente. Na primeira
página já vai largando a mão na cara:
Não restam mais dentes
não importa
ainda pode cuspir
na roda morta.
Poema evocando outro, do “maldito”
Sérgio Sampaio, autor de “Roda morta”, a marca dos tempos atuais de podridão
moral, cívica e física. Vou no Youtube e escuto Sampaio deplorar as hordas de
demônios, “com os dentes cariados da alegria, com o desgosto e agonia da manada
dos normais e a sordidez dos conteúdos desses dias maquinais”.
Enquanto isso, passo as noites
ouvindo os cupins laborando, sem se importarem com a crise estrutural do capitalismo.
No breu da noite, eles me dão lição de movimento social coletivo. Evoquei um
velho ditado de Portugal: a idade não faz corajosos nem sábios, faz velhos.
Dito isso, fui dormir minhas três horas de modorra agoniada.
Fábio Mozart, me emocionei com tua narrativa, me identifiquei e faço minhas as tuas palavras... Muito interessante. Façamos uma reflexão.
ResponderExcluir