segunda-feira, 23 de março de 2020

Ave Maria no meio da instabilidade emocional



Arnaud do Sax é daqueles sujeitos com música em seu código genético. Desde menino, já impactava o meio ambiente com o som do violão, flauta, trompete, teclados e sax. Vivendo no país mais musical do planeta, na região mais representativa das matrizes sonoras étnicas, foi construindo a sonância em harmonia com os cantos, danças, ritmo e cadência da mistura cultural. Acabou músico da noite e instrumentista de banda filarmônica, seu ganha pão. Toca em boates, bares, shoppings e recepções. É saxofonista da Banda Santa Cecília, de Sapé, uma das mais antigas do Brasil.
A crise da pandemia pegou Arnaud do Sax e rasgou sua agenda. Não tem mais como pagar suas contas. Ele, igual a todos os trabalhadores brasileiros informais, jamais será ressarcido. Paga o preço desse fenômeno sanitário e, de quebra, da incompetência e mau-caratismo dos comandos nacionais. Em 2012, a Câmara Federal rejeitou projeto que concedia seguro-desemprego a artistas, músicos e técnicos em espetáculos de diversões.
O músico abandonou seu instrumento diante do desconsolo e aflição da hora. A crise do capitalismo juntou-se ao vírus e à desordem institucional bolsonarista. O grande cérebro coletivo brasileiro deu um nó.  Velhos e novos, empresários e operários, artistas e trabalhadores informais não conseguem ver nem a ponta do iceberg, mas já se mortificam com a certeza do desastre iminente.
O que fazer? Em isolamento, as pessoas reagem fincando bandeira em terreno descampado da desesperança ou vislumbrando um mundo prenhe de outro mundo que está para sair dessa instabilidade mundial. Na Itália, as pessoas se postam nas janelas e cantam canções de crença e sonho. No seu condomínio, toda tardezinha Arnaud do Sax põe uma caixa de som na janela do apartamento e toca a Ave Maria de Gounod. No primeiro dia recebeu 300 mensagens dos vizinhos no Instagram. A última audição contou com um público oculto de mais de mil residentes no condomínio, a julgar pelos comunicados elogiosos. “Redescobrimos a fé e a alegria de viver”, enunciou um casal de idosos. “Aceita cachê? Informe o número da conta”, disponibilizou outro. O próprio músico se diz amparado pela ação artística e humanitária. “Expulsa minha inquietude e consternação do peito”, assegura.
“O Brasil não é um país sério”, teria dito o presidente francês Charles De Gaulle. É lenda. A sentença foi realmente dita por um embaixador brasileiro na França. Atualmente, os embaixadores das nações do mundo nos olham e ponderam: “o Brasil não é um país sadio”. Nossa elite é insalubre. Entretanto, que povo maravilhoso escolheram para povoar este hospício! Pelo menos os nossos artistas conseguem proteger nosso conceito com sons, cenas, movimentos, imagens e cores da cultura brasileira e emocionando com o show perenal da solidariedade e a beleza do humanitarismo.

Valeu, Marcelo Piancó! – Em 2015, fiz entrevista com o humorista Marcelo Piancó, uma das melhores do meu programa “Alô comunidade” na Rádio Tabajara da Paraíba. Conversa prazerosa onde ele falou de humor, poesia, ativismo político e militância social. Voltei a ouvir a gravação da entrevista no Youtube neste domingo (22), quando soube de sua morte. Além de ter sido um dos maiores comediantes da Paraíba, Marcelo Piancó era mestre do soneto. Sempre insistia com ele para publicar seu trabalho de alto valor literário. Marcelo era igual a mim, um protelador. Nos dramas clássicos, o herói habitual acaba tragicamente. Marcelo viveu construindo o riso e morreu com a dignidade de um Carlitos.



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