As meninas de Itabaiana
Viajo para ver, ouvir, rir e rever,
constatar que passam os estilos, o tempo, enfim, tudo. O Nordeste, por onde
caminhei e caminho, tem muito de um tudo desse Brasil.
De São Paulo para Recife,
pesquisando, vou para João Pessoa, e de lá, indo para Campina Grande, vou para
Pilar e entro em Itabaiana, cidade importante na era dos trilhos. Quero rever a
estação de trem, famosa no começo dos anos passados, ver a cidade em que Zé
Lins estudou e assim sentir o cheiro de terra, salpicos do rio Paraíba, ora
enchendo com as chuvas.
Com o amigo Anselmo, chego em
Itabaiana, vamos à casa das meninas, como assim são chamadas na cidade: “ii” e
“nenén”, digo, Ivone e Margarida. Lá as encontro como que dormindo sobre o
tempo, com uma lisura de humanidade que pouco se vê, muito pouco.
Eram três as filhas de Nazinha – irmãs que roeram e roem o tempo: uma faleceu,
professora Clotilde, chamada Tide; ficaram as duas das pontas, Margarida
(nenén), a mais velha, e a mais nova, Ivone (ii). São duas mulheres de aço que
resistem ao tempo: moram sozinhas, solteiras; a família se resume a primos –
Anselmo é um deles. Sentados, na cozinha, tomamos café e falamos sobre a vida
e, dentro disso, dos poetas, do pastoril, do Colégio do Prof. Maciel, em que Zé
Lins do Rego estudou e do qual Tide foi diretora, das festas de fim de ano, dos
picolés de D. Dozinha.
O tempo passou, mas o mascaramento da
vida permanece, diz ii, “os tempos mudaram muito, dá um enjoo grande, mas a
vida é assim, temos que aguentar como o tempo é, mas reclamar não custa nada… a
televisão não me engana mais, melhor ouvir os versos de cordel, e ver o menino
assaltando outras velhas e fechar a janela e engolir o susto”. Reclama das
plantações de grama, ocupando o pasto dos bois e sendo vendidas para os campos
de futebol, verde mentiroso. Assim diz ii, e olha para nós, fita meus óculos e
diz: “Bonito, parece os óculos de antigamente”; e prossegue: “Você é
jornalista, né? Leu muito, então conhece Jeca Tatu?” Eu respondo: “Faz tempo”,
e ela: “Leia, ainda tenho aqui na minha estante empoeirado, era de Tide, mas li
outros, os poetas do cordel, as novenas, os almanaques, Zé da Luz.”
O caso levou-me para Lobato no seu
Jeca, em que mostra um país dividido, por tanto e quanto, por um lado
travestido de chique, de bacana e rico e, no entanto…
“Nossas casas não denunciam o país.
Mentem à terra, ao passado, à raça, à alma, ao coração. Mentem em cal, areia e
gesso, e agora, para maior duração da mentira, começam a mentir em cimento
armado. Dentro dum salão Luís XV somos uma mentira com o rabo de fora. Porque
por mais que nos falsifiquemos e nos estilizemos à francesa, Tomé de Sousa e os
quatrocentos degredados berram no nosso sangue; Fernão Dias geme; Tibiriçá
pinoteia e Henrique Dias revê o seu pigmentozinho de contribuição.”
(Monteiro Lobato, em Ideias
de Jeca Tatu)
Melhor olhar o coração de Jesus, de
nenén, em Itabaiana, tomando o café de Ivone.
*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP.
Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial
da área de Literatura, além de contista e poeta com livros publicados
(paulovasconcelos@brasileiros.com.br).
Nenhum comentário:
Postar um comentário