quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Sobre fiado, cachaça e sociologia


Quando fui embora de Mari, formou-se um grupo de alegres e hedonistas cidadãos para o bota-fora, na barraca de Joquinha do Cachorro Quente. No meio dos galhofeiros, dominava o compadre Chapéu do Correio, o maior piadista da terra de Adauto Paiva. Depois de uns dois metros e meio de cerveja, Chapéu rabiscou essa quadrinha em papel de embrulhar cachorro quente:

Quando Fabinho zarpou
Dessa terrinha pequena,
Até garrafa chorou,
Até copo teve pena!

No fim da farra, espanto geral: Assis Firmino, um sujeito tão caloteiro que não paga nem visita, assumiu a conta. Joquinha da Barraca não aceitou o vale do Sindicato dos Trabalhadores Rurais nem cheque tipo bumerangue. Firmino teve que pagar em cash, fato que muito preocupou a roda de amigos. Corre pela cidade uma lenda: quem avistar o dinheiro de Assis, fatalmente morrerá. Comentando o caso, Chapéu foi definitivo:

− Nossa vida é uma ejaculação precoce. Se eu bater a biela, já vi tudo nessa existência, até Assis Firmino pagar uma conta.

O mundo é feito de caminhos imprevistos. Depois que saí de Mari, muitos companheiros foram para o andar de cima, incluindo o próprio Chapéu. De minha parte, parece que a velha Caetana não quer renovar meu visto de permanência. Na prática, minha teimosia em continuar fumando e bebendo “chá de filosofia” vai enfim determinar que caia o pano mais cedo. Entretanto, conhecer pessoas e vivenciar tudo o que me foi dado conhecer, que me afetou profundamente de forma positiva ou negativa, tudo isso faz com que minha vidinha seja uma experiência original, como no fim é a vida de todos nós.

Tem as pessoas especiais que nos legam sua força e seu carisma. Em uma roda de cachaça, isso nos anos 70, meu eterno professor Idalmo da Silva fez uma continha mais ou menos assim: de cada 10 brasileiros, 7 nascem entre a miséria e a pobreza. Ter sido sorteado para nascer entre os remediados implica uma dívida social da porra! Daí a solidariedade que nesse pequeno grande homem corre pelas veias. Com ele aprendi que participar de movimentos sociais, sindicatos, organizações não governamentais e entidades ou grupos voltados aos interesses da maioria é uma forma da gente abater um pouco essa dívida.

Eu sou um homem com falhas profundas, ainda que não corrompido. Entre meus deslizes de caráter, porém, não está a ingratidão. Reconheço como bem de capital a influência de pessoas como Idalmo da Silva na minha formação enquanto homem nesta sociedade desigual. Quando ainda bebia cachaça, Idalmo vinha do Ponto Cem Réis, à noite, meio bicado. Foi cercado por dois ladrões que levaram sua bolsa com o bem mais valioso daquele camarada tão sem ambições materiais: um exemplar todo marcado de “O Processo Civilizatório”, de Darcy Ribeiro. O livro, mundialmente conhecido, é uma espécie de bíblia da sociologia. Idalmo procurou outro exemplar nos sebos durante dez anos. Finalmente, encontrei o livro no Rio de Janeiro. Quando passei às mãos do professor Idalmo sua estimada obra, acredita que o cara encheu os olhos de lágrimas?

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