sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Sandália de Jandira


Romualdo Palhano

Esse título me fez relembrar “Los zapaticos de Rosa”, excelente poesia do intelectual Cubano José Martí, que se encontra em sua obra “La Edad de Oro”. Em sua homenagem registrei meu filho que nasceu em Havana: José Martí Luna Palhano. Então, voltemos para a sandália de Jandira.

Jandira Lucena, gente da gente, artista plástica, atriz de qualidade, pessoa reconhecida na cidade, aonde era professora e mantinha uma escola de datilografia em sua residência. A companheira Jandira também era integrante e sempre compartilhava como os audaciosos projetos do GETI. Por um lado, eu, como ator da “Paixão de Cristo” na carroceria de um velho e desgastado caminhão (nosso palco), que seguia pelas ruas da cidade, em meio à procissão da sexta feira santa. Por outro, Jandira Correia de Lucena, como grupo de apoio daquela inesquecível apresentação, seguia ao rés do chão e acompanhava o caminhão com a missão de proteger o espaço cênico e os atores.

Naquela ocasião, a multidão estava grudada e vidrada naqueles personagens bíblicos. Era difícil se movimentar com tanta gente. Não havia um só espaço vazio na principal rua de Itabaiana. Ninguém podia mais entrar, ninguém podia mais sair. Aquela massa de gente seguia vagarosa, lenta, mas esperançosa. Era apenas acompanhar o ritmo compassado e os passos sincronizados dos religiosos romeiros. Enquanto na carroceria do caminhão continuava o espetáculo; embaixo o povo não andava, era literalmente empurrado por aquela obcecada multidão, ávida de acompanhar “pari passu” a encenação e os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, até o desenlace final.

Naquele frenesi aconteceu o inesperado: a colega Jandira Lucena começou a choramingar, ficar amarela, suada. Em determinado momento tentava se abaixar e não conseguia, parecia procurar algo. E eu nesse fogo cruzado: ora prestava atenção ao espetáculo, ora olhava o público e ora me preocupava com o sufoco da pobre Jandira. Quando tive oportunidade perguntei: - O que aconteceu? Respondeu-me Jandira: - Desapareceu! Retruquei: - O quê? Ela: - Perdi minha sandália!!! A sandália de Jandira ficara para trás perdida entre os milhares de pés dos romeiros que ali se encontravam.

A essas alturas, diante do crescente avanço da procissão, não havia mais como retornar com aquela quantidade de gente. O povo era como as águas furiosas das cheias do velho Paraíba. Foi quando compreendi que Jandira realmente acabara de perder uma de suas sandálias. Depois fiquei sabendo que o par de sandálias era novinho em folha; estava sendo usado pela primeira vez e havia sido um presente de aniversário oferecido por sua generosa mãe. Só então passei a entender o valor afetivo daquela sandália e a profunda tristeza realçada no rosto de Jandira. Aqui aproveito esse momento para deixar um grande abraço à colega Jandira Lucena por termos vivido esse momento histórico, único e inesquecível. Em depoimento do dia 11 de janeiro de 2010, a própria Jandira nos relata sobre o referido fato:

Foi numa sexta-feira da Semana Santa, em Itabaiana-PB (minha terrinha). O GETI – Grupo Experimental de Teatro de Itabaiana fazia uma apresentação da Paixão de Cristo pelas ruas do centro da cidade, durante a procissão do Senhor Morto, utilizando um caminhão como palco. Eu tinha 17 anos e fazia parte do grupo (fui uma das fundadoras), mas nesse período estava um pouco afastada. Mesmo assim, fui prestigiar o trabalho da turma e acompanhar a procissão.

Quando o caminhão-palco deu aquela paradinha numa das estações da via-crucis, Romualdo, um colega que estava atuando, vendo-me espremida pela multidão, gentilmente convidou-me para subir e até me ajudou a sentar na carroceria. Foi aí que começou o meu martírio... Tragicômico, eu diria.

Nessa procissão tinha muita, mas muita gente mesmo, e todos queriam ver de perto os atores interpretando personagens bíblicos. Então, naquele tumulto, uma das minhas sandálias (novíssimas!) caiu. Quando desci e me baixei para pegá-la, o caminhão deu partida... Céus! De repente, escureceu tudo e fui atropelada e pisoteada pela multidão, parecia até o estouro de uma boiada. Que situação!
Foi horrível, vexatório, mas não deixou de ser engraçado também. Contudo, pior que os hematomas e o constrangimento foi não ter conseguido encontrar a sandália. Não pela perda material, pois ganhei outra igualzinha, mas por tratar-se de um presente antecipado de aniversário que a minha mãe havia me dado naquele dia (ela sempre nos presenteia bem antes da data), e que achei de estrear justo naquela ocasião. Ai, como chorei...
Jandira Correia de Lucena.


(Do livro sobre a história do Grupo Experimental de Teatro de Itabaiana, escrito por Romualdo Palhano, que deverá ser lançado em 2011)

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