quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Unhandeijara Lisboa, um conterrâneo por afinidade


A matriz afetiva de Unhandeijara Lisboa era Itabaiana. Foi da reminiscência mais primordial daquela cidadezinha à margem direita do rio Paraíba que ele produziu os primeiros cortes profundos na rústica madeira da raiz primitiva. Seu avô Carvalho negociava com ouro nos tempos áureos da velha Itabaiana da feira de gado mais famosa do Nordeste brasileiro. Sua mãe nasceu na terra de Sivuca e Vladimir Carvalho, de quem foi amigo a vida toda, talvez parentes. O próprio Vladimir é mestre na gravura e na criação gráfica. Quem influenciou quem?
José Serra escreveu em prefácio de livro de Vladimir Carvalho, citando outro artista: “Segundo o catalão Gaudí, não se deve erguer monumentos aos artistas porque eles já o fizeram com suas obras”. Quero reverenciar esse mestre paraibano, Unhandeijara Lisboa, porque ele foi um grande artista visual e, principalmente, porque seu universo íntimo e psicológico estava ligado diretamente à minha terra. Unhandeijara partilhava conosco as memórias itabaianenses. A arte de Unhandeijara é inspiração nascida dos vestígios do agreste de onde saíram seus pais. “Vladimir de Carvalho carrega o Nordeste brasileiro dentro de si para onde vai e nunca perdeu o sotaque, seja na língua, seja na alma”, disse o jornalista Carlos Alberto Matos. Unhandeijara, que nasceu em João Pessoa, sempre retornava às suas origens mais remotas, a centenária Itabaiana de sua infância.
Em entrevista que me concedeu na Rádio Tabajara, a última desde que se recolheu ao seu refúgio no bairro Jaguaribe e praticamente descontinuou seu trabalho após a aposentadoria, Nandinho mostrou-se profundo conhecedor da história de Itabaiana, desde o começo do século vinte quando aquele burgo brilhava como um lugar de cultura e desenvolvimento. “A primeira revista cultural da Paraíba foi editada em Itabaiana, a “Nova era”, de Sabiniano Maia”, lembrou Unhandeijara. Nessa revista, seu avô anunciava sua loja de joias e relógios.
No perfil de Unhandeijara Lisboa o registro de seu lado generoso e político. Ele sempre fez questão de evocar a luta e cultuar a memória de uma personagem controvertida da história social e política itabaianense. O agitador político e cultural Francisco Joaquim de Almeida Neto, o Chico Veneno, foi colega de Unhandeijara. Essa afinidade levou o mestre Nandinho a proteger Chico quando perseguido pela repressão do movimento militar de 1964. Chico fundou o jornal “Evolução” e foi um dos pioneiros do cinema documentário paraibano, o que o leva para a seara de Vladimir Carvalho. Repare no arranjo dessa teia. Sobre ele escrevi o folheto “O homem que intoxicou a burguesia”. Perseguido pela ditadura, Chico encontrou em Unhandeijara um protetor e amigo. A trágica desgraça do despotismo militar uniu o arrebatado Chico e o utopista Unhandeijara Lisboa. Ambos sonhavam com uma nação desamarrada das correntes do atraso. Eles não se encontram mais dentre os vivos. Chico se suicidou há muitos anos. Nandinho feneceu em 11 de fevereiro de 2020, dia de Nossa Senhora de Lourdes. O que me faz lembrar de Maria de Lourdes Almeida, a Lourdinha, irmã de Chico Veneno, aliada de Unhamdeijara na luta pela preservação da memória de Chico.
De fato, o gravador, escultor, fotógrafo, jornalista e professor Unhamdeijara Lisboa é e será sempre um nome de destaque na história da arte brasileira. E não só no território da arte. Nandinho foi um combatente pela liberdade de expressão. A jornalista Fabrícia Jordão faz uma reflexão sobre as artes visuais, as universidades e o regime militar brasileiro a partir da criação do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba. Da mesma forma como pretendem hoje os aprendizes de ditadores no poder, em 1975 o Governo Federal procurava montar formas de controle e adequação da cultura aos interesses ideológicos dos militares. A Política Nacional de Cultura, no entanto, deixava brechas para atuação de artistas de esquerda. Nas universidades, foram criados cursos de Educação Artística. Na Paraíba, a UFPB concebeu o Núcleo de Arte Contemporânea. Fabrícia conta as lutas dos artistas e professores para fazer respeitarem esse setor na Universidade, mesmo com um Ministério conservador, culturalmente tradicionalista e obediente ao controle político-ideológico do regime. Unhandeijara estava lá, na linha de frente, com sua resistência e sua têmpera em matrizes de puro carvalho pugnador das boas causas.


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