A matriz afetiva de Unhandeijara Lisboa era
Itabaiana. Foi da reminiscência mais primordial daquela cidadezinha à margem
direita do rio Paraíba que ele produziu os primeiros cortes profundos na
rústica madeira da raiz primitiva. Seu avô Carvalho negociava com ouro nos
tempos áureos da velha Itabaiana da feira de gado mais famosa do Nordeste
brasileiro. Sua mãe nasceu na terra de Sivuca e Vladimir Carvalho, de quem foi
amigo a vida toda, talvez parentes. O próprio Vladimir é mestre na gravura e na
criação gráfica. Quem influenciou quem?
José Serra escreveu em prefácio de livro de
Vladimir Carvalho, citando outro artista: “Segundo o catalão Gaudí, não se deve
erguer monumentos aos artistas porque eles já o fizeram com suas obras”. Quero
reverenciar esse mestre paraibano, Unhandeijara Lisboa, porque ele foi um
grande artista visual e, principalmente, porque seu universo íntimo e
psicológico estava ligado diretamente à minha terra. Unhandeijara partilhava
conosco as memórias itabaianenses. A arte de Unhandeijara é inspiração nascida
dos vestígios do agreste de onde saíram seus pais. “Vladimir de Carvalho
carrega o Nordeste brasileiro dentro de si para onde vai e nunca perdeu o
sotaque, seja na língua, seja na alma”, disse o jornalista Carlos Alberto
Matos. Unhandeijara, que nasceu em João Pessoa, sempre retornava às suas
origens mais remotas, a centenária Itabaiana de sua infância.
Em entrevista que me concedeu na Rádio Tabajara, a
última desde que se recolheu ao seu refúgio no bairro Jaguaribe e praticamente
descontinuou seu trabalho após a aposentadoria, Nandinho mostrou-se profundo
conhecedor da história de Itabaiana, desde o começo do século vinte quando
aquele burgo brilhava como um lugar de cultura e desenvolvimento. “A primeira
revista cultural da Paraíba foi editada em Itabaiana, a “Nova era”, de
Sabiniano Maia”, lembrou Unhandeijara. Nessa revista, seu avô anunciava sua
loja de joias e relógios.
No perfil de Unhandeijara Lisboa o registro de seu
lado generoso e político. Ele sempre fez questão de evocar a luta e cultuar a
memória de uma personagem controvertida da história social e política
itabaianense. O agitador político e cultural Francisco Joaquim de Almeida Neto,
o Chico Veneno, foi colega de Unhandeijara. Essa afinidade levou o mestre
Nandinho a proteger Chico quando perseguido pela repressão do movimento militar
de 1964. Chico fundou o jornal “Evolução” e foi um dos pioneiros do cinema
documentário paraibano, o que o leva para a seara de Vladimir Carvalho. Repare
no arranjo dessa teia. Sobre ele escrevi o folheto “O homem que intoxicou a
burguesia”. Perseguido pela ditadura, Chico encontrou em Unhandeijara um
protetor e amigo. A trágica desgraça do despotismo militar uniu o arrebatado
Chico e o utopista Unhandeijara Lisboa. Ambos sonhavam com uma nação
desamarrada das correntes do atraso. Eles não se encontram mais dentre os
vivos. Chico se suicidou há muitos anos. Nandinho feneceu em 11 de fevereiro de
2020, dia de Nossa Senhora de Lourdes. O que me faz lembrar de Maria de Lourdes
Almeida, a Lourdinha, irmã de Chico Veneno, aliada de Unhamdeijara na luta pela
preservação da memória de Chico.
De fato, o gravador, escultor, fotógrafo,
jornalista e professor Unhamdeijara Lisboa é e será sempre um nome de destaque
na história da arte brasileira. E não só no território da arte. Nandinho foi um
combatente pela liberdade de expressão. A jornalista Fabrícia Jordão faz uma
reflexão sobre as artes visuais, as universidades e o regime militar brasileiro
a partir da criação do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da
Paraíba. Da mesma forma como pretendem hoje os aprendizes de ditadores no
poder, em 1975 o Governo Federal procurava montar formas de controle e
adequação da cultura aos interesses ideológicos dos militares. A Política
Nacional de Cultura, no entanto, deixava brechas para atuação de artistas de
esquerda. Nas universidades, foram criados cursos de Educação Artística. Na
Paraíba, a UFPB concebeu o Núcleo de Arte Contemporânea. Fabrícia conta as
lutas dos artistas e professores para fazer respeitarem esse setor na
Universidade, mesmo com um Ministério conservador, culturalmente
tradicionalista e obediente ao controle político-ideológico do regime.
Unhandeijara estava lá, na linha de frente, com sua resistência e sua têmpera
em matrizes de puro carvalho pugnador das boas causas.
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