segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O poema circula na praça e no sanitário

 


O radialista, poeta cordelista e dramaturgo Fábio Mozart acaba de lançar um opúsculo em formato de bolso com o título “Poemas malditos em prosa, verso, gesto e grito”, tentativas de haicai, tercetos que reduzem ao mínimo a imagem poética. Nos gestos e gritos miniaturizados, Fábio recomenda a leitura do livrinho em filas, sanitários, praças e ônibus. Baratinho, o livro foi produzido abrindo os direitos autorais. Diz a legislação que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. O autor Mozart quer que o usufruto da obra seja de todos, de maneira comercial ou apenas moral. Ele avisa:

Contrariando a lógica

do mercado salafrário

o poema circulando

na praça e no sanitário.

 

Que a indústria cultural “ilumina como engano a massa”, conforme Theodor Adorno, isso já se sabe desde as peripécias de Monteiro Lobato na tentativa de criar um parque gráfico acessível para o autor nacional e uma base de leitores interessados no que nossos escritores têm a dizer. A poesia de Fábio Mozart circula entre amigos e nos sebos. Sua ideia determinante é produzir arte no teatro e na literatura, enquanto dissemina empreendedorismo social e cultural. Criou grupos teatrais, rádios comunitárias, times de futebol, associações de artistas, jornais e academias. Conheci o dito cujo na década de 1980, no movimento teatral amador da Paraíba. Ele vivia em Itabaiana, cercado pela influência de prodígios feito Zé da Luz, Sivuca, Ratinho, Vladimir Carvalho e mais recentemente, Jessier Quirino, vindo de Campina Grande para “salvar o que estava perdido”, parodiando o evangelista. Sim, porque a cultura popular acompanha a decadência da sociedade moderna. O pensamento mágico e espiritual, a memória coletiva, os valores artísticos do povo nunca estiveram mais ameaçados. Daí a importância do trabalho de um Jessier Quirino.

 

Mas eu falo da poesia de Fábio Mozart no livrinho “Poemas malditos em prosa, gesto, verso e grito”, que esta não tem raiz no pensamento e na forma do folheto tradicional da literatura de cordel, outro vetor da criatividade deste pernambucano, radicado na Paraíba há mais de meio século. Tive o prazer de inaugurar uma de suas crias, o Teatro de Bolso Nautília Mendonça, em Itabaiana, improvisado em um galpão. O teatrinho fechou, sem sustentação alguma dos tais órgãos públicos, como aconteceu com o nosso Teatro da Juventude de Cruz das Armas, o JUTECA em João Pessoa. E Mozart sempre foi descrente dos tais entes públicos e das divindades. Isso evidencia-se no verso:

 

Desconfiado de Deus e da ciência

morreu com um pé atrás

ponto final com reticência...

 

O livro é farto em concepções e imagens anarquistas. O autor sempre combateu o fascismo cultural, e hoje, nesses tempos assombrosos de atraso e decadência cultural, o velho poeta ainda arregaça as mangas da camisa bastante gasta nas suas inúmeras atividades democratizantes, humanizadoras e solidárias. Criador progressista, Mozart não tolera ser chamado de poeta. “Sou trabalhador ferroviário”. Aqui e ali, o livrinho fala de ternura. “Nesses tempos de ódio, amar nos faz revolucionários”. E o velho ferroviário não planeja encerrar seu ofício na estrada de ferro da arte nem tão cedo. Assim ele finaliza o livrinho, que recomendo:

 

Reinstalei a memória

que eu pretendo ser

uma longa história.




(Bento Júnior - Poeta, professor e ator)

 

 

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