quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A POESIA DE FÁBIO MOZART

Poeta e humanista confundem-se em um universo poético anacrônico? Nem tanto. Antes de tudo, Fábio Mozart é poeta num país em crise crônica, por isto uma poética adstringente e amarga. Mas o lirismo, o mais das vezes, desarma a selvageria da “dor de estar no mundo” com a exaltação sutil e bela dos sentimentos pessoais.
Esse universo diversificado e competente reativa formas clássicas com firmeza e delicados toques de linguagem, sem se filiar a qualquer proposta ou estilo. Poesia fácil de ser compreendida, ainda assim, o trabalho de Fábio Mozart não se enquadra no simplismo sem essência. O mais das vezes a sua poética quer “perceber” a parte interior e profunda das coisas, como no poema CABEÇA DE MULHER NA PIA. Segundo a reflexão de Heidegger, na sua “Introdução à Metafísica”, no “poetar" do poeta, como no pensar do filósofo, de tal sorte se instaura um mundo, que qualquer coisa, seja uma árvore, uma montanha, uma casa, perde toda a vulgaridade”.
Em meio ao descaso à palavra, à arte da palavra, até alarmante, que se vê na nossa região, louvo este opúsculo no qual fica sempre como que um saldo nevrálgico da condição humana.
Sem contemporizar com a injustiça, o poeta desenvolve sua arte numa perspectiva sociológica. Sua poesia faz com que o leitor saia do seu egocentrismo para refletir sobre a nossa realidade.

Maciel Caju


CABEÇA DE MULHER NA PIA
Fábio Mozart

Natureza morta, urbana, de aparência tal
que a história natural das coisas faz sombria,
debulho terno a ti, cabeça úmida e fria,
e entrego aos teus cuidados o canto invernal

Que o mal em si não é mal, é a forma que escolhemos
para escorrer as dores em lenta sangria.
Estranho a tudo, em meio a esta fotografia,
percebo, morna e calma, a vida que não temos.

E enfim será por certo a pátria tão sonhada
de quem vislumbra em ti mistério e fantasia.
Delírio vergastando o rosto, e essa elegia
com amargo gosto e sonho a ti vai dedicada.

Se alguém te viu assim e cuidou que sentia
o horror da carne em violenta vertigem,
imobilizas, pois, tão reticente e virgem,
e apanhas em "close" essa visão vazia.

Numa tristonha manhã de setembro, em meio
a indistintos sons de coisas que estão mortas,
e abre na pele a textura dessas portas
que, investindo, para inquietar-nos, veio.



ITABAIANA E A TRIBUNA
Fábio Mozart

Itabaiana, rainha encantadora
Deste vale de gente sofredora
Que possui uma força criadora
Do tamanho da força do torrão!
Quem te vem visitar se sente em casa,
Porque todos te cabem sob a asa
Neste sol mui fecundo que te abrasa
E que abrasa as pessoas do teu chão!

Se algum dia eu tiver que abandonar-te,
Da maneira que muita gente parte,
Eu te juro jamais deixar de amar-te
Do lugar mais longínquo que estiver,
Mas espero não ter este castigo,
Pois eu quero morrer no solo amigo
Onde vim construir o meu abrigo
E onde sinto que existe quem me quer!

Na História, teu nome é consagrado,
O teu solo por Deus abençoado,
O teu hoje de paz e o teu passado
Hão de ser decantados no porvir.
O teu povo tão nobre e tão valente,
Diz somente o que sente, e quando sente,
Não se cala, ergue a voz valentemente
Na TRIBUNA mais livre que existir!



BODAS DE OURO
Aos meus pais Arnaud Costa e Iraci
Fábio Mozart

Juntando os cacos da vida
Formaram uma porcelana.
Essa rica filigrana
É a jóia mais querida.

Desse casal que completa
Cinqüenta anos de afeto,
E esse amor mais dileto,
Ao chegar a essa meta,

Meio século de afeição,
Vai colher fruta madura,
Porque a paixão que dura
Amadurece o coração.

Subindo a escada da vida
Escalaram os degraus do Ser,
Medida do bem querer
Que o coração dá guarida.

Parece ontem e já fez
Cinqüenta que o Mestre Arnaud
Esculpiu arte-noveau
Com engenho de amor e paz,

Num equilíbrio precário
Junto à sua santa pura
Que impede essa criatura
De cair em abismo vário

Seus filhos, noras e netos
Não temos palavras certas;
Apenas veias abertas
Para verter seus afetos.



O RÁBULA FALA DE CÁTEDRA
(Ao meu pai, Arnaud Costa)
Fábio Mozart

O condenado que é privado de viver
Como um decente e respeitado ser humano,
Os párias tristes, meretrizes, mundo insano
Que o nascer-contravenção põe a perder,

Os deserdados, nessa torpe condição
De resistir, mesmo que o Foro lhes delate,
E a justiça carcomida fira e mate,
“Prisão perpétua e mais dois de reclusão”

Além de provas, contra-provas, leis, ação
Penal, e o mais que a “máquina” vil inventa,
Tem o causídico, o rábula que sustenta
Tênues defesas de um mundo em podridão.

Se réu confesso, inconfesso ou revel,
Tem dele o rábula imagem mais perfeita,
Pois da seara miserável faz colheita
E dessa seita de apenados rasga o véu.

Conhece o rábula do seu constituinte
As chagas doloridas, o viver de cão;
Para tais vítimas o direito é vão
E a física prisão é mais que um acinte.

Não isenta de pena a tal sociedade,
Os criminosos que são seu produto,
Mas não detém, por baixo desse indulto,
O defensor em busca da verdade.



SONETO À FILHA RECÉM NASCIDA
(Para Etiene Mozart)
Fábio Mozart

Filha também dessa neurastenia,
Parte de mim, um pobre combatente,
Verás, decerto, a mesma luz que um dia
Guiou teu pai em revolta latente.

Espero enormemente da criança
Que és, ver surgir mais um infante,
Da escuridão fazendo uma esperança,
Da fé comum uma lança cortante.

Sê forte, sê livre e será possível
Viver e lutar com dignidade,
Sonhar com a aurora, que o dia aí vem.

E quando surgir a luz inconfundível,
Mesmo relutante, da tal liberdade,
Verás que NINGUÉM É SENHOR DE NINGUÉM.



REGIÃO PARAÍBA
(Para Vladimir de Carvalho)
Fábio Mozart

A região paraíba
não é zona de agrião.
A esperança de vida,
nascendo, é de poucos anos.
A região paraíba
todo dia se suicida
e cria dores absurdas
e subordina-se ao princípio
de quanto pior, pior.
Por via de sugestão,
a região paraíba
não é mata nem sertão,
nem cariri, litoral,
não é agreste a extensão.
É zona reconhecida
em qualquer geografia
e, uma vez desenhada
no papel cartografia,
é de pronto excluída.
A região paraíba
sofre reformas e emendas.
Para tal iniciativa
o século dobra em eventos,
o bom senso e a eqüidade
sofrem severos tormentos.
Na região paraíba
como sói acontecer
a fadiga, quadro a quadro,
o marasmo, sol a fogo,
criam grandes utopias;
país de são saruê.



LEMBRANÇAS...
Fábio Mozart

Fiquei velho de tanto me lembrar
Das histórias da minha meninice,
De um romance de amor que alguém me disse,
Da vivência feliz do meu lugar,
Da linguagem rasteira de falar
Com o povo da minha região,
Visitando uma noite e outra não,
As famílias que mais tive amizade,
Quando a gente magoa uma saudade
Incomoda demais o coração!



POEMA DE DOR E FÉ
Fábio Mozart

Meu poema é violento e triste
como a fome do país.
É sujo, rude e sujo
como a miséria do mundo.
É escandalosamente pobre
como o vencimento
do vencido operário.
Meu poema é teimoso
e não aceita que perdeu
e então carinhosamente embala
os sonhos e esperanças doidas
que ainda persistem.



PÁTRIA ARMADA
Fábio Mozart

Vem da sarjeta, vem do gueto infecto,
Do cais do porto, das noites animais,
A horda insana que se joga em repto,
Infantes podres em tons espectrais
Formando assim um virulento aspecto
De uma vanguarda vã, passionais.
E ao “civismo” os cães declaram guerra
Já que ultrajados e párias da terra.

Sem ter raiz, a tropa suicida
Se veste de excremento e cheira cola,
Parteja a morte, come e bebe a vida
Que o capital lançou, granada-esmola
Do grande arsenal que é uma ferida
Olhando do buraco da sacola
Vazia, de aversão e fel inchada,
Assim caminha a minha pátria armada.

Essa epopéia vil, degenerada,
Dedico aos deuses e reis do império
Que alimentam a minha pátria armada
Com confiança e paz de cemitério.
Só vós, a cujos reinos a manada
Doa com fé a sua mente estéril,
Preparas, como perito soldado,
A bomba de efeito retardado.

A justiça de Deus tarda e não falha,
Diz o dogma cristão ocidental,
Por isso, enquanto aguarda sua mortalha
O infante vai traçando todo o mal
De que é capaz sua garra, e estraçalha
A divina formação piramidal
Das elites, celestiais pilares,
Comprometendo as forças regulares.



SONETO A FLORBELA ESPANCA
Fábio Mozart

Não a de Augusto, mas outra pantera
Sem a elegância da dondoca vã,
Também fez da angústia o mote de uma era,
De alma libertária, triste e pagã.

Divina transgressora dita Conceição,
Poeta por instinto, artista de alta proa,
Matriz do feminismo na terra de Pessoa,
Quem dera conhecer teu dúbio coração!

No seu nobre desprezo pela humanidade
Foi refratária à tola generosidade
E só a um amou com grande sentimento.

Outras cintilações ressurgem dos afrescos,
Tesouros consumidos em “círculos dantescos”
Em meio ao orgulhoso e anárquico lamento.



FIM DE LINHA
Fábio Mozart

Escrever um soneto com saudade
De alguém que, porém, não está ausente,
Uma dor esquisita que se sente
Ao chegar nessa tal “melhor idade”.
É que o tempo estiliza a crueldade,
Ampulheta que vaza e engana a gente,
Porque, mesmo se alguém está presente,
Dolorosa solidão já nos invade.
E nesse tempo de delicadeza,
Sigo ao teu lado com certa nobreza,
Revendo lances de intimidade
Em pano rápido, qual uma mortalha
Que cobre um corpo e alma que já falha
No apagar da afetividade.



SONETO VIRTUAL
Fábio Mozart

Um poema em formato tão antigo
Discorrendo sobre a comunicação
Via net, destino que agora sigo
Nos caminhos voláteis da ilusão...

De magia eletrônica adornada,
Pincelando o "non sense" em vários tons,
Sem semblantes, tocamos a jornada
Permeada de bit e muitos sons

De ilusória cascata, rara fonte,
Universo irreal, sem horizonte,
Sinfonia disforme e atonal.

Não há sonhos dentro desses circuitos
Elétricos, só encontros fortuitos,
Patético delírio virtual.



ZÉ DA LUZ
Fábio Mozart

Percorrendo com a lanterna de Diógenes
Os caminhos visionários do sertão,
Vi em cena um poeta alfaiate
Escrevendo na areia com espinho
Traços retos, repletos de inflexões,
Meias-luas, ferraduras e ogivas.

O poeta, meio triste, ao som de sinos
Repicados na Matriz da Conceição,
Afogava o seu fogo nordestino
Com trinados, toadas e arrulhos
Que a zabumba e o triângulo ritmavam,
Num estouro, desenlace, rasga véu
De segredo penetrável, claro enigma.

De textura, de arcabouço e construção
Fina e seca como o Rio Paraíba
Os seus versos, possuindo claridade,
Irrigando com a força das torrentes
Velhos troncos de história liquefeita
Da largura de um povo em sequidão.



IMPRENSA
Fábio Mozart

E eis que o véu do templo foi rasgado.
A luz se fez guiando o inconfidente.
De Gutenberg a filha, previdente,
Difunde em corpo doze o revelado.

Quebrou-se o despotismo de um passado
Nas trevas do silêncio consumido.
Nasceu um novo mundo ao ter-se erguido
O braço da imprensa, e anunciando
Mais um suporte da democracia.

Porém, se a estupidez da tirania
Mantém a tua força reprimida,
Sem medo da incerteza e das rupturas,
Extirpa, pois, o véu das estruturas,
Reabre o caminho para a vida!



LIRA DESVAIRADA
Fábio Mozart

Lira desvairada

acondicionada

& metrificada.

Lira que ressuscita,

sem pensar em nada,

sem saber de nada,

a grandiloqüência

dos estados febris.

Desvairada,

cordas que vibram,

cordas quebradas,

obscenas, improvisadas,

desvairadas...

Lira,

do poeta de Itabira,

dos poemas de ira.

Lira,

oásis interior,

inferno multicor

que rende, contrita,

um pleito à dor

Lira desvairada,

sempre buscada

nunca à mercê.

Afinal, eterno sonho

que se deforma e se conforma

com essa vida

de A a Z.



TRIBUTO À AMIZADE
Fábio Mozart

Gostaria de fazer este poema
Num tom decente e imaculado
E ofertá-lo, honestamente honrado,
Disfarçando eventual algema

Da timidez que minha ode invade,
Aos que dos sonhos meus compartilharam,
Aos que já foram e aos que ficaram,
Oxigenando a vida de pura amizade.

E nas veias do poeta que o declame
Há de correr um “quê” de rebeldia,
Harmonizando autor e homenagem.

Porque nas lides dessa vida infame
Dar-se-á o abraço, mas como quem cria
A trama feita de fé e coragem.



DOIS TRONCOS DE BARAÚNA
Fábio Mozart

Zé da Luz e Jessier,
Artistas dessa porfia,
Dando lição aos doutores
No reino da poesia,
Escancarando o Nordeste,
Sua dor e alegria.

Um doutor e um alfaiate,
Dois mestres da Paraíba,
Um morreu deixou o rastro,
O outro segura o quiba,
Os dois cantando o sertão,
Um embaixo e o outro em riba.

Uma voz paraibana
Campina Grande enaltece,
O outro, o Zé da Luz,
A outra terra enobrece,
Itabaiana do Norte
Do grande filho não esquece.

Dois troncos de baraúna
Da cantiga popular
Vieram unir suas vidas
Buscando o mesmo lugar:
Na cidade Itabaiana
Jessier fez o seu lar.

A terra que inspirou
Zé da Luz desde menino
Agora é mãe adotiva
Desse Jessier Quirino,
Unindo a obra e a vida
Dos poetas com esse pino.



ITABAIANA CENTENÁRIA
Fábio Mozart

Há o mistério das civilizações
No fecundar de uma simples vila
Que o elemento social destila
Com o labutar de muitas gerações.

E revivendo essa embriologia,
Guiados pelo espírito nativista,
Nossos patrícios passam em revista
Um
centenário de brava porfia.

Nação do homem é a terra inteira,
E o gênero humano seu compatriota,
Mas é na mais humilde aldeota
Que o indivíduo faz a sua esteira

Com o vestígio próprio, indivisível,
Que plasma sua passagem neste mundo,
O conterrâneo, esse sinal profundo,
É o ego, marca, aroma inconfundível.

Firmou os pés onde eu firmei, na luta,
O pária, o nobre, nosso irmão antigo,
Operário da História que, comigo,
Constrói a nossa social conduta.

Os homens, lendas, fatos da história
De Itabaiana no seu centenário,
Revisitados, como um relicário,
Para o resgate da nossa memória,

Serão nas noites do tempo um clarão
Guiando a via da comunidade.
Nas páginas douradas da saudade
Medida exata de nossa emoção.



HOMENAGEM A AUGUSTO DOS ANJOS
Fábio Mozart

Ele já foi decantado
Por todos os trovadores
E bons improvisadores
Do verso escrito e cantado.
Desde os vates do passado,
A arte desse poeta
Aponta como uma seta
O objetivo da vida:
O belo é a grande meta.

Mesmo falando da morte,
Esse poeta do “Eu”
Que aqui em sapé nasceu
Tinha a natureza forte
Pois a beleza era o norte
De sua obra imortal,
Criação original
Da mente do mestre Augusto
Por isso eu digo sem susto:
Excede o bem e o mal.

O seu cantar era aberto
À criação mais poética
Porém sem respeitar ética,
Sem ser errado nem certo.
Um linguajar bem liberto
Dominada a criação
Desse gênio brasileiro
Morrendo em solo mineiro

Longe do amado torrão.
Todas as comunidades
De doutor e acadêmico
Estudaram o verso anêmico,
Fora das realidades,
Constatando essas verdades
Como coisa de doente,
Mostrando para o vivente
Que somos apenas pó
E no mundo estamos só
Com a solidão da gente.

Augusto é o inventário
Da dor e da solidão
Transformou-se num filão
Para poeta lendário,
E até um certo otário
Sem caráter e sem talento
Com a cabeça de vento
Se diz sucessor de Augusto.
Eu ouço e até levo um susto
Diante de tal intento.

Um poeta verdadeiro
Augusto dos Anjos é.
Eu comparo com Pelé:
É o único e derradeiro.
Lembrado no mundo inteiro
Já faz parte da História
Para nós é uma glória
No aspecto cultural
O poeta genial

Vive na nossa memória.
Todo encolhido nas asas
Do corvo agourando a morte,
Diz o poeta que a sorte
É nuvem em cima das casas,
É lama nas covas rasas
Lá no Engenho Pau D´Arco
Onde se deu bem o marco
Do nascimento do artista
Que colocou bem à vista
Da alma humana o charco.

84 era o ano
E o século dezenove.
Lentamente já se move
Esse poeta troiano
De cuja obra eu me ufano
Sem medo da podridão
Arrastando o coração
Do homem com seu escarro
Pois somos feitos de barro
E o destino é o caixão.

No dia 20 de abril
Comemoro o nascimento
Desse homem de talento
Que aqui em Sapé surgiu
Pois o mundo nunca viu
Tanta arte e irreverência
Com a clara consciência
Da Nua realidade:
A tragédia e a maldade
De nossa humana vivência.

No mais tudo é teoria,
Só lendo os versos do “EU”
Pra sentir como sofreu
Augusto em sua agonia
Descrevendo a anarquia
Que é a natureza humana
Com a crença soberana
De uma obra singular.
Augusto foi e será
O maior dessa porfia.



CONCHAVO
Fábio Mozart

A miséria e a desdita que carrego
concilia com a fortuna, a qual nego.

A pobreza e o absurdo desse fato
fazem-me próximo e consócio de um rato.

E nós ambos envolvidos em conchavo
decidimos: um de nós será escravo

Um do outro na metade de um dia;
no outro tempo trocaremos a serventia.

E assim nós traçaremos um caminho
de dureza, de penúria e muito espinho

Que antecede um tempinho de bonança
onde a gente esquece tudo e enche a pança

Com o queijo que vem da grande despensa
onde o gato nos comeu a consciência.



CANÇÃO DO DESTERRO
Fábio Mozart

Ó pátria amada
idolatrada
digna és
dos brasileiros.

Seja-nos, pois,
concedida
a clava forte

Terra adorada
entre outras mil
terras colônias.

Dos filhos és mãe,
gentil Brasil;
quadra infantil.

Idolatrada
salve, salve,
Mãe Menininha.

Minha terra
tem palmeiras,
Salve a Rainha

Onde canta o sabiá
e os EUA.

As aves
já não gorjeiam
Deus proverá.



SAL DA TERRA
Fábio Mozart

Olhai o mundo astuto

vetusto
será por fim o olhar
do eterno sobre o novo.
Põe o pé na terra

dissoluta
será o contato do unigênito
com a velha mãe.
Tu és o sal da terra.
Tu és Deus,
premido pela necessidade

da modéstia,
humilhado pela hegemonia

do usurário.
Aspirando um ar sempre novo
apesar do cheiro do domador,
criando prazeres e distribuindo,
entre os necessitados,

pérolas,
apesar do grotesco dos porcos.
Pulverizando milagres,
apesar do martírio desse instante anacrônico,
apesar da tortura desse momento-acidente.



A CIDADE DO MILAGRE
Fábio Mozart

Era uma cidade devota
de sons delicados
repleta de personagens
que não estão entre nós
porque já destruíram suas vidas
e ficaram órfãos,
de si mesmos.

Era uma cidade modesta
até que acordou
para o milagre-miséria
aglutinando milhões
de pobreza industrializada.

E dessa forma
o homem comum radicou-se
em sua terra natal
e foi condenado a construir
penosamente
na cidade-prostituta
as casamatas que se abrem
para o abismo da cidade grande.



INTERROGATÓRIO
Fábio Mozart

Aos quatro dias do mês de maio
de mil novecentos e oitenta e um
na sala negra
compareceu em carne e osso
em processo acumulativo
de podridão moral e cívica
maria josé

brasileira desocupada e o diabo a quatro

residente onde queremos saber mais francamente
e interceptada
nas entrelinhas
de um cinto de couro cru
um relógio a quartzo
um toca discos e um sapato de lona
esclareceu a declarante
declaradamente arrependida
que o mistério dessa vida
é a vida sem mistérios
das mulheres da vida
e mais não disse
e nem lhe foi perguntado
e mandou a autoridade
lavrar esta inutilidade
que após lido e bem conforme
desencadeará uma série
de processos fisiológicos
na cabeça do meritíssimo.



A UM COMPANHEIRO MORTO
(Para Valmir Francisco de Morais, in memoriam)
Fábio Mozart

Se um homem viveu iluminado
Por um raio libertário de idéias,
Deixa, morto, no palco e na platéia,
A crença num trabalho inacabado.
Confusos e apressados, procuramos
Resgatar esse fio da meada.

Só a necessidade da jornada
É que encobre a dor que disfarçamos.
Se foi um sonho de dignidade,
Se é generoso o exemplo a seguir
Na grande luta, nos legou Valmir
A fé na classe e o valor da amizade.
E a cada avanço do operariado
Brilhará quem viveu iluminado.



VIVA O GORILA!
Fábio Mozart

Quero fazer um poema fragmentado
grosseiro, vulgar e incivil,
dissidente, herege e pedante
como a afetação dos sério-cômicos sociais.

Quero fazer um poema doente,
redundante, pequeno e inimigo,
um poema feito de cacos
de dentes apodrecidos
e enfeitá-lo com distintivos oficiais.

Quero rasgar um poema safado,
absurdo, estúpido e enorme,
com buracos desse tamanho
escarrando no olho do lírico.

Quero editar um poema manchado
com o sangue de um lazarento
e sujá-lo com honras militares.

Quero escrever um poema ridículo
e vendê-lo a preços módicos
nas trincheiras da civilização cristã.

Quero lavrar um poema decadente,
paulatinamente podre,
bombasticamente bosta,
inexoravelmente negro,
monumentalmente miséria
e ofertá-lo em abundância
em qualquer ordem do dia
para a grandeza de nossa ferocidade
e glória da procedência primata.



O MENINO GUERRILHEIRO
Fábio Mozart

Antes de se tornar guerrilheiro
o menino da Nicarágua lutou
contra o tanque
contra o fuzil
contra a tirania.

Depois de guerrilheiro
o menino da Nicarágua luta
contra os padrastos do Norte
contra o desnível econômico
contra os critérios do “mundo livre”.

Ele gosta do “Che”
e o seu combate sandinista
é um combate-travessia
é um combate franco-atirador
que fecha lenta e gradualmente
as feridas de sua aldeia.

Um dia haverá uma reunião
na choupana pobre e ainda guerrilheira
e o menino da Nicarágua
rodeado do orgulho das mulheres
massacrado pela guarda internacional
nas fronteiras do bairro e
nas fronteiras do mundo ainda “livre”
mas ele apontará para o amanhecer
porque todo cidadão é responsável
e emocionalmente criança
pra sustentar a bandeira da esperança.



PROVÉRBIO
(Para Idalmo da Silva, um revolucionário autêntico)
Fábio Mozart

Os cães ladram e a caravana passa
Os cães poderosamente ladram
E a caravana...
Os cães organizadamente ladram
E a caravana?

Os cães subvertem a ordem das palavras
Os cães subvertem a ordem da poética
Os cães subvertem a ordem, a causa
E o efeito.

Os cães ladram
E a caravana é um circuito em reviravolta,
Os cães ladram
E a caravana passa momentos de máximo
Absurdo.

Os cães se reconcentram e ladram
E a caravana é uma dispersão contínua.

Os cães, não por acaso, exercem pressão
Sobre a caravana que passa,
Na plenitude do seu ocaso histórico.



FUNERAL DE UM LADRÃO
Fábio Mozart

O caixão fúnebre
macio
com estilo
parecia uma fortaleza
de granizo
para imortalizar
o faraó da usura.
O seu bando
(grupo financeiro)
bailava,
bradava
barganha.
O seu amor
(pobre cruzeiro)
cada vez mais se prostituía
no mercado financeiro internacional.



ORDEM UNIDA
Fábio Mozart

O cabo
dá cabo
cabível.
O major
manja muito
de morte.
O coronel
coça a coronha
colérico
O general
generaliza
o gênero humano
e bota todo mundo
em ordem unida.



EDITO INQUISITORIAL
Fábio Mozart

Vem, filho meu,
com brandura
de gênio
com doçura
de mel
com maneiras
afins.

Vem, filho meu,
que te quero
público
que te anelo
os flagelos
da ira do Senhor.

Com murros,
socos e descargas,
placidamente
te expulsarei
os demônios
te esmagarei
os hormônios
e te amarei
com justiça.

Vem, filho meu,
que te rogo
e interrogo.
Que o Sumo Bem
te apedreja
e te almeja
a paz eterna.

Que o Poder
te esconjura
te acolhe e fura
o olho vil
Para que o fuzil
seja a verdade
e penalidade
onisciente
Elege e ama
o teu carrasco
com nojo e asco
ele te chama.



MORREU EM PONTO MORTO
Fábio
Mozart

Morreu bonito.
Vinha descendo a Avenida Nossa Senhora Aparecida,
padroeira da República Federativa do Brasil,
e vinha de um país desconhecido,
com sua lotação carregada
de angústias, fome e desesperanças.

Morreu um motorista, do coração.
Querido chofer, finalmente você morreu.
Morreu com classe, irmãozinho!
Parou a máquina,
pediu para que os passageiros descessem
e foi embora, humilde e correto.

Ninguém reclamou.
Ninguém pediu o troco
roubado.
Simplesmente todo mundo deu de ombros
ante as insignificâncias da vida.

No país chamado Brasil,
um motorista velho morreu em ponto morto.
E deve ter comido muita poeira
antes de morrer.
Até que a vida se encheu de deserto.

Só resta à multidão embasbacada
dispersar e procurar a esmo
sua identidade.



ANTES QUE VENHA O DILÚVIO
Fábio Mozart

Há que se soltar o Touro
como um justiceiro forte,
que alague de sul a norte
com uma mijada.

Há que se fechar estrada,
fazer piquete na rua,
deixar a elite nua,
numa cilada.

Há que se apertar o laço
nessa gente sem-vergonha
sem mais demora.

Carece gritar ao mundo
nosso brado retumbante
logo agora.

É preciso arrebanhar
e trancafiar, deter
a camarilha.

Antes que o Touro brabo,
diante do descalabro
dessa quadrilha,

Encha as medidas do T
com seu orgulho ferido,
numa explosão,

mande tudo pelos ares
com uma forte e concentrada
evacuação.



ENSAIO DE POEMA-LIBIDO
Fábio Mozart

Se é verdade que teus olhos mijam,
e tuas tranças feitas de pêlos
das axilas indomáveis
reconsideram a inversão de valores/posições
morais,
é verdade também
que tua nádega,
não sendo flor que se cheire,
deixa a inebriante sensação

de anatematizado sexo,

excitando a desordem

entre excrescência carnosa,

estrofes de amor estrógeno,

extravagante desejo,

eixo de um mundo perdido

quando éramos puros e animais.



ALGUMA PONTE HÁ DE SE CONSTRUIR
Fábio Mozart

E a carta abraçou seu pescoço
E há fogo e paixão em minhas palavras
E há suspense e susto e raiva
E sei que isso não é tudo, mas,
Na nossa geografia,
Alguma ponte há de se construir.



OS MENINOS E O VELHO
Fábio Mozart

A meninada joga futebol.
Ele é apenas um sujeito errante.

A meninada joga futebol.
Ele foi, apenas relativamente.

A meninada não tem nem doze anos.
Ele, de acordo com o livro A-2,
Não deve por o pé na bola.

A meninada segue a enxurrada.
Ele se juntará à corrente da história,
Ao fim do dia, no pé do muro,
Discretamente.

A meninada joga futebol.
E um personagem de Poe lhe atrapalha.

A meninada joga futebol.
E ele insiste na sua integridade,
Intolerável na marcação cerrada.

A meninada joga futebol.
A vida, germinando, joga.
Ele se despede, num último arranco
De força abandonada.

A meninada, ante a pesada porta
De cedro que o esconde,
Onde soluça a opressão das coisas
Paralisadas e subtraídas,
Joga futebol.

Ele, com superioridade subalterna,
Reza a um deus vago e impreciso
Pela força da raça
Num reflexo de bondade.

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