quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Passa um filme na minha cabeça...

 


No começo do ano 1960 foi inaugurado o Cine Alvorada, em Timbaúba dos Mocós, Zona da Mata norte de Pernambuco. Em 1970 lancei o Jornal Alvorada, título que remete ao primeiro cinema que conheci, projeto de empresários do setor calçadista. Lembrando que, na época, Timbaúba era o maior polo calçadista do Nordeste. O Cine Alvorada fechou em 1985. Eu e meus primos Josué e Jackson éramos habitué do escambo de gibis na frente do cinema. Cada garoto com seu feixe de revistas do Tarzan, Tio Patinhas, Gato Félix, Zorro, Combate, Superman, Fantasma e Mandrake, para troca e, eventualmente, venda. A negociação em dinheiro sendo operação rara no meio daquela molecada desprovida de capital. Um comércio que já morreu há muito tempo, junto com o velho cinema de rua. Valia como especulação e usura pedaços de película cortados dos filmes e jogados no lixo do cinema. Um Tarzan novo custava dois Zé Carioca de terceira mão e um gibi sebento de Mickey, com mais meio metro de sequência de filme.

É aqui que entra a poesia da infância. Diga-se como esclarecimento necessário que eu tinha oito anos e televisão ainda chegava apenas como ecos incertos e duvidosos de um índio chamado Tupi, domesticado por um tal Assis Chateaubriand lá para as bandas do sudeste remoto. Tratava-se de cinema em casa, com projetor feito de caixa de sapato da marca “Criança”, a maior fábrica de calçados de Timbaúba. Esse projetor de filme rudimentar virou mania dos garotos. Meus primos construíram o seu e projetavam pedaços de sequências de filmes renomados, exibidos no Cine Alvorada. “O crepúsculo dos deuses” combinava com “Fúria de viver”, fundido com “Rio bravo” e partes roubadas de “A sede do mal”.

Na psicologia do garoto extasiado pelo fervor da arte, aquele cineminha em casa foi, sem dúvidas, o que melhor personificou meus verdes anos. Meus primos construíram um projetor para mim, que funcionava com uma lâmpada cheia com água e um espelho em quarto escuro com subsídio de uma nesga de luz do sol. Parecia um sonho. Nas sessões de cinema no bairro Timbaubinha, na humilde casa de tia Judite, a gente cobrava até ingresso. A entrada tanto podia ser um gibi supersurrado de Buck Jones como uma decente bola de meia. O que eu desejava espantosamente passou muito tempo para ser superado pelas invenções tecnológicas e avanços da ciência. Na verdade, essa fantasia gerou crédito imperecível na mente fantasiosa do garoto. Ainda hoje eu vivencio na memória afetiva a sensação de ser dono de um projetor de cinema de caixa de sapato.

É, provavelmente, a lembrança de manifestação artística mais importante de todos os meus tempos de artista amador e entusiasta da capacidade criadora do ser humano. Em nosso cineminha passavam sequências ligeiras, mudas e estáticas, de muitos filmes que depois se tornaram clássicos. Aqueles pedacinhos de celuloide não representavam arte, no meu modo de cogitar essas reminiscências da infância. A obra de arte era o projetor artesanal. Aquela máquina rústica era a matriz da minha emoção. Guarda um significado único. 

Meu filme vai chegando próximo do temido “The End”. Não sei se o fim será bom, se teremos partes “roubadas” pelo projetista, enjoado com a saga sem suspense de uma vidinha medíocre. Entretanto, sei que existe aquela câmera subjetiva dominando um campo do meu filme que ninguém é capaz de ver. Não conseguem ter profundidade de campo, porque jamais construíram e manipularam um projetor de caixa de sapato. O enquadramento vai obscurecendo, sem a dimensão humana como referência. No meu plano geral, uma sequência sem cortes me leva à velha Timbaúba e seu saudoso Cine Alvorada. O diretor pede um plano de conjunto mostrando um grupo de meninos em um quarto na penumbra. Aquilo que a câmera não vê, por uma questão de objetividade e insensibilidade, em primeiríssimo plano está o memorial de um guri abismado e fascinado pela banalidade e intersubjetividade da vida que se transforma em arte na roda do cotidiano.

 

 

 

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