segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Poeta negro paraibano foi o precursor do modernismo

“Canjica”, moleque franzino e esperto de Araruna, sentiu um tranco interior quando viu a caravana dos artistas mambembes entrando na cidade. Isso foi em 1914. Os artistas eram da Companhia de Teatro e Variedades de Irene Conceptini, atriz italiana decadente em busca de plateias virgens nas quebradas da Parahyba do Norte. “Canjica” foi embora com a troupe, pegou altura, aprendeu a voar. Virou ator de teatro e poeta.
Em 1925, publicava seu primeiro livro, “Canções que a vida me ensinou”. Assinava com seu nome artístico: Peryllo Doliveira. E a vida ensinou muito ao moleque “Canjica”. Desde 1898, quando nasceu, até passar pelos palcos da Bahia e Rio de Janeiro, perambular pela vida de artista negro e pobre, até morrer tuberculoso em 1930 na capital da Parahyba do Norte. “Inteiramente alheio às maldades do mundo”, como pensou Álvaro de Carvalho, Peryllo Doliveira vivia seus papeis no teatro e assombrava seus fantasmas interiores com sua poesia simples, “Caminhos cheiros de sol” levantando a “Voz da terra” num canto espontâneo e natural como os ares e cheiros das serras da Borborema. 
Peryllo foi o primeiro poeta paraibano a assumir o credo novo do modernismo, nascido oficialmente em 1922. Por isso, e por ser negro, pobre e artista de teatro, foi muito discriminado no seu tempo.  A despeito disso, Perillo Doliveira “viveu apenas para seu sonho estético”, como bem marcou Ascendino Leite. Sua tragédia pessoal talvez tenha influenciado sua poesia, mas nem tanto. Era um artista muito avançado para sua época. Raul de Góes mesmo afirma: “foi o maior poeta de minha geração”. Oscar de Castro: “foi um poeta que melhor soube pintar no sofrimento alheio o drama do seu próprio destino. Cantou nos seus versos a agonia dos que têm fome, dos que nasceram marcados ou estigmatizados pelo sofrimento. Implantou, entre nós, a poesia moderna e foi inexcedível na compreensão da angústia dos oprimidos.”
Em 1928, minha cidade Itabaiana vivia seus dias de glória. Era um centro cultural e comercial de grande força. Na maior feira de gado do Nordeste, floresceram iniciativas incomuns para a época. Tínhamos revistas de cultura, jornais diários e tudo que o dinheiro podia comprar. No rastro das facilidades da modernidade que chegava de trem, vieram jornalistas, poetas, artistas, músicos e todo um universo de novas mentalidades a ferver o caldeirão cultural da terra de Abelardo Jurema. A revista itabaianense “A Cidade”, editada por Mário Campelo, foi o primeiro órgão de imprensa a comentar a obra de Peryllo de Oliveira, em artigo assinado pelo editor em outubro de 1928. Severino Peryllo de Oliveira juntava-se assim aos três severinos de Itabaiana que, quase da mesma geração, mexeram profundamente com o mundo da arte, cada um em seu labor revolucionário: Severino Dias (Sivuca), Severino de Andrade (Zé da Luz) e Severino Rangel (músico e compositor Ratinho).
Peryllo foi jornalista. Na imprensa, foi incentivador do movimento modernista, ele mesmo um dos primeiros a aderir à nova ordem estética. Era também pintor. Ele mesmo criava e pintava os cenários das peças. Interpretava papeis cômicos e dramáticos com sua voz cheia, voz de tenor de largos pulmões que depois seriam invadidos pela tuberculose. No dia 23 de março de 1923, fazia sua estreia em palcos paraibanos, no Teatro Santa Roza, com a comédia “Água mole em pedra dura...”
Assim viveu Peryllo, um poeta de escol que nunca frequentou escola. Em certo momento da vida, adoeceu de varíola. Naqueles tempos, uma das maiores pandemias. Assustava a humanidade. Pois, o poeta enviou um exemplar do seu livro para um jornal paraibano. O editor mandou queimar, “para evitar contaminações”.
Em 26 de agosto de 1930, Peryllo Doliveira morreu em sua casinha pobre da Rua 12 de Outubro, em Jaguaribe, na capital da Parahyba do Norte. Apenas dez pessoas compareceram ao seu enterro. “Eleito pela morte, porque a vida há muito o desenganara”, conforme publicou o jornal oficial “A União”, de Orris Barbosa, o único órgão da imprensa a noticiar a morte do poeta.
Para a capital, recém batizada João Pessoa, Peryllo dedicou este verso:

Ave, cidade
cheia de graça!
O meu espírito é contigo.
Para a minha alma
és entre todas 
a mais querida.

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