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quinta-feira, 19 de março de 2015

Memórias do medo


Em 1970 eu tinha quinze anos de idade e estudava numa escola particular em Itabaiana do Norte. Nossa educadora era uma mulher baixinha, enérgica e disciplinadora. Lembro de dois companheiros de sala de aula: Luciano Falcão, filho do chefe da estação ferroviária, Zé Falcão, e Ivan Oliveira, que depois entraria comigo nos quadros da Rede Ferroviária Federal, ele como maquinista, eu na função de Agente de Estação.

Eram tempos de muitas histórias de bravura e covardia protagonizados pelos brasileiros de todas as matizes, debaixo de um regime de força que já durava seis anos. Criados naquele clima de medo coletivo, os rapazes como eu pouco suspeitavam do terror que se instalou nas mentes das pessoas. Qualquer um poderia ser seu delator. Bastava uma palavra de protesto, um comentário, um ato qualquer de pretensa rebeldia para constar nos cadernos da repressão, sofrer humilhação, prisão e inquéritos forjados. Os estudantes foram proibidos de falar em política, através de um decreto do ditador do momento, o General Emílio Garrastazu Médici, considerado o mais sanguinário dos generais presidentes do regime militar. As lutas do povo eram castigadas com torturas, até assassinatos nos porões do Exército e Polícia Federal. A censura não deixava escapar nenhum protesto na mídia. Enfim, instalava-se a famosa “paz de cemitério”, onde o medo imperava.

No interior, o povo tinha mais medo da ditadura do que do Satanás. Em Itabaiana, muita gente foi presa, acusadas de subversão, vítimas de delações cavilosas.  No contexto daquele momento histórico, sem acesso a informações, os jovens não sabiam o que era democracia nem tampouco entendiam o significado do golpe militar para a vida do país. Depois, os sonhos de revolução e o desejo de combater aquelas infâmias invadiu muita gente moça, eu entre elas. Discutíamos política escondidos, onde livros clandestinos nos davam ideias bem diferentes do clima de repressão que foi imposto à sociedade.  

Virei militante, e isso é outra história. O que quero falar hoje é da minha escola primária e sua professora. Ainda está viva, essa mestra. Devo muito a ela pela base da formação escolar. Recordo que a rapaziada chamava o Presidente de “Garrafa Azul”, uma forma de galhofar com o poder absoluto dos militares. Eis que, um certo dia, minha professora me pegou apelidando o general. Essa senhora passou quase uma hora me humilhando diante da turma e exaltando a ditadura. No fim, me aconselhou a respeitar os superiores e mandou todo mundo cantar o hino nacional, de pé, em homenagem ao general presidente.

Conto isso para lembrar a minha vivência particular da ditadura, nossos pequenos atos de resistência como a brincadeira de chamar o Médici de “Garrafa Azul” e, principalmente, o pânico que se instalou na sociedade. Aquela professorinha talvez nem gostasse tanto do regime, mas era preciso deixar claro que não aceitava nenhum ato de protesto em sua escola, porque “as paredes têm ouvidos”, qualquer um poderia ser acusado de comunista e passar a viver no inferno. Os delatores andavam apontando pretensos opositores que iam se explicar nos quartéis. Muitos deles inocentes, como éramos todos naquela escolinha primária.

Hoje, em pleno auge da democracia, vemos rapazes e moças nas ruas chamando a Presidente Dilma de “puta” e pedindo a volta dos militares. Não importa a motivação política, esse tipo de ofensa seria motivo de prisão e tortura no regime de força que manteve o Brasil sob as botas castrenses durante vinte anos. Muita gente pagou até com a morte por muito menos. Um professor meu, inadvertidamente, pichou uma parede com “abaixo a ditadura”. Foi preso e torturado no quartel do Exército.
Depois, em 1980, no final do terror de Estado que marcou nossa geração, eu escrevi uma peça chamada “Batalhão das sombras”, falando justamente do medo que foi a tônica daqueles tempos sombrios. Uma personagem declamava poema de Carlos Drummond de Andrade, o “Congresso Internacional do Medo”:

"Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas."


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