Com
o vasto universo inteiro à sua disposição, o cronista optou por viver no
planalto da Borborema entre as cidades de Bananeiras e Solânea. Vales e serras
verdes, banhados por rios históricos e inextinguíveis, sob o domínio do rio
Curimataú que recebe as águas dos rios Dantas e Picadas e os riachos Carubeba e
Sombrio. O aspecto sombrio da
atualidade: esses rios e córregos inconstantes não estão dando conta de suprir
os viventes desse mais elementar líquido para a vida humana. Os rios e
barragens do brejo não atendem mais aos aglomerados urbanos da região. A
barragem de Canafístula perece no mormaço sertanejo, em pleno brejo. Essa
represa atende as cidades de Solânea,
Bananeiras, Araruna, Cacimba de Dentro e Tacima. De regime de racionamento
passou ao modo fornecimento zero. A empresa fornecedora de água já comunicou às
populações e administradores que adotem suas providências, porque se trata de
colapso geral do abastecimento d’água na região. Quem tem cisterna pode
assegurar o mínimo de água para o consumo por alguns meses. Depois, é apelar
para os caminhões pipa.
Ao lado de minha casa
tem um córrego onde os carros pipa vão abastecer. Logo cedinho, longas filas de
caminhões assustam o tetéu e o caboré com o ronco dos motores e o falatório dos
motoristas. Sem o frio do sereno que só o brejo possuía nos invernos de
antigamente. E esse “antigamente” é coisa de poucos meses. Quando cheguei aqui
no ano da peste de 2020, ainda se usava calça, bota e casaco nos dias gélidos.
Hoje não tem mais frio, nem água. Em plena serra no brejo paraibano, a beleza
extraordinária ainda persiste, mas o clima degringolou. Até as rãs abandonaram
seu habitat, percebendo mudança na umidade. As veredas brejeiras vivendo a
agressão da estiagem. “Não sei se o sertão vai virar mar, como disse o profeta,
mas o brejo tá virando sertão”, deplora o brejeiro Ofinho. Ele se queixa do efeito
estufa, mas bota um pedaço da culpa no desmatamento e a construção desordenada
de poços artesianos, danificando o lençol freático, para atender às dezenas de
condomínios erguidos ultimamente na região. “É a tragédia do capitalismo
selvagem acabando com a biosfera, ameaçando a natureza e modificando até o
clima”, lastima. “Não sou contra o progresso, mas a forma de lidar com a
ocupação urbana é que deveria ser revista”, esclarece o engenheiro Ofinho.
Nos grandes sertões das estiagens sem fim, alguns
políticos aproveitavam a tragédia da seca para ganhar dinheiro. Desconfio que a
tal “indústria da seca” vem tirando proveito dos problemas ambientais por essas
bandas e já se instala. Talvez ressignificando ou adaptando os torpes esquemas.
Outro dia ouvi de um pipeiro: “Eu assino documento de cinquenta mil, mas não
recebo isso”. Ele fornece água para prefeituras da região.
O ser humano sempre buscou adaptar-se ao meio em
que vive. Vou tentando me acertar com os novos cenários, pessoas e desafios,
depois que acabei por dar essa reviravolta na minha vida. Vim para uma
temporada provisória e já se vão quase dois anos. Ainda não me habituei com
certas coisas desse novo chão, incluindo o cântico dos pássaros. Ao amanhecer,
quem me acorda não é mais o bem-te-vi urbano nem as rolinhas e pardais. É o
“espanta boiada” passando aos berros no fim da madrugada, que na minha terra
essa pequena codorna se chama tetéu, cantador das antemanhãs da Paraíba. Depois
chega o sabiá, e dos açudes e lagoas se levanta o socozinho com seu cinza
azulado para fazer seu ninho no meu pé de cajá, ao lado do ribeirinho.
Sonoridades inauditas como a curicaca, passando com seu grito grave e monótono.
Outra ave que me apareceu, fazia tempos que não via, essa não me deu muita
satisfação. O urubu de carniça, acatingado, feio, deselegante, desarmonioso e
portador de mau presságio, conforme a crendice do povaréu. Voou sobre a casa,
pousou no pau Brasil. Sinal de decadência e ruína, conforme a superstição.
Nesse brejo a caminho de se tornar sertão, o urubu aparece como o anjo
anunciador da vingança, porque durante milhares de anos o Planalto da Borborema
impediu a umidade do oceano de chegar naquelas regiões, provocando as estiagens.
O urubu espera pacientemente que a carne apodreça para melhor digeri-la.
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