No começo do ano 1960 foi inaugurado o Cine Alvorada, em
Timbaúba dos Mocós, Zona da Mata norte de Pernambuco. Em 1970 lancei o Jornal
Alvorada, título que remete ao primeiro cinema que conheci, projeto de
empresários do setor calçadista. Lembrando que, na época, Timbaúba era o maior
polo calçadista do Nordeste. O Cine Alvorada fechou em 1985. Eu e meus primos
Josué e Jackson éramos habitué do
escambo de gibis na frente do cinema. Cada garoto com seu feixe de revistas do
Tarzan, Tio Patinhas, Gato Félix, Zorro, Combate, Superman, Fantasma e
Mandrake, para troca e, eventualmente, venda. A negociação em dinheiro sendo
operação rara no meio daquela molecada desprovida de capital. Um comércio que
já morreu há muito tempo, junto com o velho cinema de rua. Valia como
especulação e usura pedaços de película cortados dos filmes e jogados no lixo
do cinema. Um Tarzan novo custava dois Zé Carioca de terceira mão e um gibi
sebento de Mickey, com mais meio metro de sequência de filme.
É aqui que entra a poesia da infância. Diga-se como
esclarecimento necessário que eu tinha oito anos e televisão ainda chegava
apenas como ecos incertos e duvidosos de um índio chamado Tupi, domesticado por
um tal Assis Chateaubriand lá para as bandas do sudeste remoto. Tratava-se de
cinema em casa, com projetor feito de caixa de sapato da marca “Criança”, a
maior fábrica de calçados de Timbaúba. Esse projetor de filme rudimentar virou
mania dos garotos. Meus primos construíram o seu e projetavam pedaços de sequências
de filmes renomados, exibidos no Cine Alvorada. “O crepúsculo dos deuses”
combinava com “Fúria de viver”, fundido com “Rio bravo” e partes roubadas de “A
sede do mal”.
Na psicologia do garoto extasiado pelo fervor da arte,
aquele cineminha em casa foi, sem dúvidas, o que melhor personificou meus
verdes anos. Meus primos construíram um projetor para mim, que funcionava com
uma lâmpada cheia com água e um espelho em quarto escuro com subsídio de uma
nesga de luz do sol. Parecia um sonho. Nas sessões de cinema no bairro
Timbaubinha, na humilde casa de tia Judite, a gente cobrava até ingresso. A
entrada tanto podia ser um gibi supersurrado de Buck Jones como uma decente
bola de meia. O que eu desejava espantosamente passou muito tempo para ser
superado pelas invenções tecnológicas e avanços da ciência. Na verdade, essa
fantasia gerou crédito imperecível na mente fantasiosa do garoto. Ainda hoje eu
vivencio na memória afetiva a sensação de ser dono de um projetor de cinema de
caixa de sapato.
É, provavelmente, a lembrança de manifestação artística mais
importante de todos os meus tempos de artista amador e entusiasta da capacidade
criadora do ser humano. Em nosso cineminha passavam sequências ligeiras, mudas
e estáticas, de muitos filmes que depois se tornaram clássicos. Aqueles
pedacinhos de celuloide não representavam arte, no meu modo de cogitar essas
reminiscências da infância. A obra de arte era o projetor artesanal. Aquela
máquina rústica era a matriz da minha emoção. Guarda um significado único.
Meu filme vai chegando próximo do temido “The End”. Não sei
se o fim será bom, se teremos partes “roubadas” pelo projetista, enjoado com a
saga sem suspense de uma vidinha medíocre. Entretanto, sei que existe aquela
câmera subjetiva dominando um campo do meu filme que ninguém é capaz de ver.
Não conseguem ter profundidade de campo, porque jamais construíram e
manipularam um projetor de caixa de sapato. O enquadramento vai obscurecendo,
sem a dimensão humana como referência. No meu plano geral, uma sequência sem
cortes me leva à velha Timbaúba e seu saudoso Cine Alvorada. O diretor pede um
plano de conjunto mostrando um grupo de meninos em um quarto na penumbra.
Aquilo que a câmera não vê, por uma questão de objetividade e insensibilidade,
em primeiríssimo plano está o memorial de um guri abismado e fascinado pela
banalidade e intersubjetividade da vida que se transforma em arte na roda do
cotidiano.
E por falar no Cine Alvorada, o primeiro filme exibido naquela casa foi "Melodia Imortal". Vide, http://passarelacultural.blogspot.com/2016/07/de-timbauba-para-o-mundo_16.html
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