Sandoval Fagundes |
Aos sessenta anos,
um homem sai pelas ruas construindo e distribuindo formas artísticas pelas
árvores do seu bairro. Investimento pessoal, “porque a vida não tem fins
lucrativos.” Nas árvores mal cuidadas, fios se enroscam em voltas, cintilando
sob o sol. São as “próteses artísticas” de Sandoval Fagundes, intervenção que
ele chama de “Ar amado”. Sandoval também é poeta e pessoa munida de todos os
apetrechos de artista em tempo integral. Os bêbados poetas do seu bairro
aplaudem as peças nas árvores, entretanto, difícil fica aceitar que a
comunidade venha a vislumbrar a beleza e o simbolismo da arte de Sandoval. Mais
duvidoso ainda imaginar que ele venha a ter algum patrocínio, particular ou
oficial. Nada disso haverá de diminuir a satisfação de Sandoval com a confecção
de suas composições insólitas.
As árvores
apresentam uma variante festiva como se fosse Natal. No proletário bairro Ernesto Geisel, João
Pessoa (PB), o fotógrafo e ativista cultural Sandoval Fagundes ergue sua visão
de mundo a partir do arame e planta fantasia nos pés de acácia. O sol brilha na
sua careca enquanto ele pensa nos ciprestes de um campo repleto de obreiros do
sacrossanto mister de trabalhar o sonho e o belo como matéria prima. Glorioso
Sandoval! Nesses ásperos tempos de materialismo e desrespeito às criaturas, semeia
rosas de arame e reza a um deus improvável pela paz no mundo. Não a paz dos
lugares santos dos cristãos, onde os mortos jazem sossegados e alienados. A paz
da arte de Sandoval é feito aquele bem estar que sucede a uma trégua no meio da
guerra. Na verdade, Sandoval é mais um artífice que vive na corda bamba,
mantendo tenso e esticado o fio de arame da vida, equilibrando a longa e
profunda ferida da existência com a exultação da tentativa de viver sem ódio e
intolerância. Subsistir apenas para plantar subjetivas intenções de subversão
de falsos valores.
Para sobreviver,
certa vez Sandoval foi trabalhar em taxi alugado. Rodava a cidade com suas
telas e tintas na mala. Quando estacionado, pegava a prancheta e desenhava os
pequenos e imponderáveis detalhes da vida urbana. Nada a ver com as prioridades
dos profissionais do volante, recolhidos no cotidiano comum. Um sujeito que
destoava do conjunto orgânico e metabólico da sociedade consumista, corrupta,
alienada e competitiva. Foi regurgitado. Os colegas o expulsaram da praça por
não se adequar à máfia dos taxis e seus esquemas de corrupção. Lá se vai
Sandoval tentar a vida fazendo biscates, limpando jardins na velha cidade, essa
imensa floresta sem árvores. Foi cuidar das flores e dos insetos, dos
passarinhos e das rosas de arame aflitivamente carentes de reparo, desvelo e
devotamento.
Sandoval é desse
tipo de gente que pode ser acordado no meio da noite por uma amiga desesperada,
oprimida pela falta de medicamento controlado, deprimida pelo desamor. Um caso
em que as paredes do quarto vão se estreitando, ameaçando pulverizar a pessoa
vítima de ansiedade. O colega Sandoval sai no seu carrinho Fiat Uno “Deus
permita que não quebre” e roda a cidade, batendo nas portas das farmácias e
prontidões médicas para salvar a amiga de sua crise nervosa. Um cara tão vocacional,
visceral e fisiologicamente humano no que temos de mais gentil, honrado e
indulgente que fico pensando: serão os artistas os tais anjos da guarda, meio
vagos e reticentes, mas ainda assim capazes de dar sentido à vida? Tem gente
assim, que fica boiando acima das coisas e dos homens, à margem dos nossos
pequenos conflitos, capaz de fabricar devotadamente pequenas obras de arte, pendurar
em árvores e ficar esperando o lento processo de desadormecer e estimular a
lógica do belo.
Show de texto! Captou muito bem o espectro que emana desse artista!!
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