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terça-feira, 22 de setembro de 2015

Pequeno conto da ironia navegante

Wellington Costa (de branco), comigo e Tadeu Patrício, Secretário de Cultura de Cabedelo

A certeza implacável é que você vai voltar pelo mesmo caminho e encontrar as almas que você combateu, humilhou, foi rebaixado, desprezado ou vencido. A historinha me foi contada pelo meu confrade e ex-companheiro ferroviário, o agora marinheiro Wellington Costa.
Há uns vinte anos, Wellington chegou a um estágio de desconfiar seriamente da confiança e da solução dos homens. A injustiça, a dureza da vida e a debilidade psíquica bateram em sua porta, e ele abriu sua vivenda e sua vida para esses males. Desempregado, processado, vítima do desrespeito e iniquidade, andou meio que martirizado. Desvigorado pela sorte má, acalmava o infortúnio nas tabernas.
Certa noite, meu compadre vagava pelas ruas de Cabedelo onde mora. Embriagado, roupas sujas, barba por fazer, requentava suas mágoas sem saber como iniciar a vida novamente. Passando no Teatro Santa Catarina, viu a faixa anunciando o lançamento do livro de Altimar Pimentel, um teatrólogo, folclorista e escritor muito engrandecido pela sociedade paraibana.
Dizem que bêbado é como cachorro: encontrando a porta aberta, já vai entrando. Era uma festa pública. O livro foi subvencionado pela Prefeitura, falava da cidade e sua história. Wellington adentrou ao gramado, como diria aquele narrador de futebol, a perscrutar as faces das pessoas e avaliar seus próprios horizontes sociais perdidos. Duas filas: uma para se pegar o livro e a outra para receber o autógrafo do autor. Quando chegou sua vez de receber seu exemplar, a pessoa que fazia a entrega foi ríspida e cruenta:

--- O livro é pra quem sabe ler. Saia da fila.

Meu compadre velho retirou-se da cena mais acabrunhado do que cachorro que desaba do caminhão da mudança. Nascido e criado em Cabedelo, foi menino fantasiando batalhas no fortim de Santa Catarina. Filho de um dos maiores músicos da Paraíba, o mestre Wilson do Bandolim, compadre Wellington sentiu que até sua cidadania estava sendo sequestrada.
Sua barca passou pela tempestade, curtiu os tiros dos canhoneiros das fragatas inimigas, abateu os corsários e voltou ao porto seguro e sereno. A vida cedeu armistício. Limpadas as penas, contornadas as adversidades, compadre velho saiu mais forte da iminência do naufrágio. Voltou a se impor pela inteligência e espírito solidário, com a firmeza dos grandes capitães. Refez a vida, entrou na marinha mercante, publicou livros e jornais, montou banca de locutor de rádio comunitária, angariou novamente o prestígio e admiração dos conterrâneos.
Quis o destino que a Prefeitura de Cabedelo instituísse concurso para escolher a melhor redação sobre a vida e a obra de Altimar Pimentel. Wellington Costa concorreu e foi premiado com o primeiro lugar no certame. Senhor de si no tombadilho da nau da vida, Costa desviou seu galeão para as correntes calmas da modéstia que engrandece. “Eu só queria encontrar aquela pessoa que me expulsou da fila do livro de Altimar, não para desfazer da figura, mas para dedicar a ele meu trabalho sobre o grande escritor que tanto nos orgulha. Acho que foi a partir daquele momento de vexame público que eu comecei a dominar minha aflição e superar meus traumas”, acredita ele.

Até as florestas tropicais remanescentes e os verdes mares de Cabedelo sabem o que representa a figura de Wellington para a cultura local. Naqueles mangues e baías, infestados de piratas e bucaneiros, a Nau Catarineta de Wellington Costa vai singrando sem correr risco de naufrágio. 

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