O circo preparou-se para funcionar no meio do terreno baldio, espalhando seus trastes, madeiros e cores pálidas, desgarrados gatos pingados e malas misteriosas, junto com trouxas de roupas grotescas esperando a noite do destino. Os meninos cercavam a jaula da fera do Gran Circo Central, um gato maracajá assustado. Pela janela do camarim feito com madeiras salvadas da última enchente do rio, o palhaço Pingolenço sente cair em cima do seu pensar uma imensa responsabilidade quando vê chegar o delegado acompanhado do cabo Furico. Iluminado pela luz fraca do camarim, Pingolenço reflete sobre aquele sonho. Foram 88 dias de preparação para estrear o circo, o tempo de uma gestação.
O delegado entrou no cubículo.
-- Pingolenço, hoje eu venho ver seu circo. Se tiver partes impróprias para as famílias, mando fechar o circo e prendo o dono por uma semana, sendo o preso forçado a consertar a latrina da cadeia e pintar a delegacia.
Fique registrado que esse Pingolenço era o que se chama de “homem dos sete instrumentos”. Sabia pintar, consertar engenhocas mecânicas, tocar bombardino, ler partitura, construir edifícios e fazer palhaçadas na feira.
Se quer saber, Pingolenço não era muito simpático ao delegado. O palhaço era um homem muito insolente, desrespeitoso em atos e palavras com a sociedade e as autoridades, chegado a fazer cenas burlescas para ridicularizar a honra militar, civil e eclesiástica.
-- Pode deixar, seu delegado. Meu circo é muito rigoroso com a moral pública e privada. Nosso espetáculo é para adultos e crianças de todas as idades.
Noitinha, as pessoas começam a chegar. Trazem suas cadeiras e tamboretes, que o Gran Circo Central não dispõe desses luxos de cadeiras, só uma pouco estável arquibancada. De repente, um rumor vago de chuva, pingos começam a cair na inaudita ideia de Pingolenço. Jamais alguém montou um circo na cidadezinha de Itabaiana. Na primeira noite, a chuva irrompeu das cinco portas do céu naquele outubro tão seco. Os vinte e seis pagantes abrigaram-se sob a arquibancada. Os meninos não arredaram pé do pé da empanada encardida. Entre esses moleques, Luiz de dona Biu, por questão de tática se posicionou por trás do picadeiro, de onde via o mestre de cerimônia com seu chapéu caprichado e guarda-chuva furado anunciar o início da função “porque o espetáculo não pode parar”. Luiz de dona Biu reconheceu o cantor Cardoso, atentou na formosura da cançoneta executada com uma voz fanhosa por Maria da Garrafa, calculou o salto mortal do Pingolenço transformado em homem elástico e derreteu-se com a magia do Mister Salvatore, que era o mesmo Pingolenço vivendo outra identidade circense.
A chuva só escasseou no fim da função. Até o delegado segurou sua posição. Que pode uma simples autoridade diante da beleza do circo, pensou. Desistiu de prender Pingolenço. “Eu errei a vocação, devia ter sido artista de circo”, reflete o cabo Furico, molhado até a alma, ainda sentindo coceira na garganta para gargalhar com as presepadas do palhaço Pingolenço, segurando a alegria, sem força de ânimo para enfrentar o delegado, os problemas e as dificuldades de viver.
-- O senhor é um humorista de finíssimo espírito – disse o escrivão, apertando a mão de Pingolenço. E ele, humilde:
-- Podia ser melhor, se não fosse a chuva.
Luiz de dona Biu voltou para casa pensando na bailarina, no acrobata e no mágico. Pelas frestas do barracão onde morava, caía uma goteira em cima da lamparina de carbureto. Não dormiu. No outro dia, foi ajudar Pingolenço a consertar a lona desbotada e frouxa que circulava o picadeiro.
-- Seu Pingolenço, eu quero ser artista de circo.
Não, não podia viajar com o circo, mesmo porque o Gran Circo Central estava impossibilitado de sair de Itabaiana. Falta transporte, falta dinheiro para embarcar no trem.
-- Fique por aí, ajudando. Depois eu ensino uns truques.
O rapaz aprendeu rapidamente. Um dia sentou no batente da casa e chorou. Depois, enxugou os olhos e, sem olhar para trás, embarcou no “bacurau” das nove horas para o Recife. Cinquenta e cinco anos depois voltou a Itabaiana. Sua mãe já era morta. Ele transformou-se no grande ilusionista Mister Kaltos, artista internacional dos maiores circos do Brasil e América do Sul.
O Mister Kaltos extraía fantasias da infância e convertia homens duros em garotos emocionados com sua magia. Nesses instantes, o próprio Mister Kaltos virava de novo o Luiz de dona Biu, olhando comovido pelas frestas da empanada esfrangalhada do Gran Circo Central, tentando apanhar o fio de uma suspeita de que aquele era seu mundo.