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quinta-feira, 13 de maio de 2010

Memórias do futebol


Fui fantasiando, fui vivendo todas aquelas vidas que eu gostaria de ter vivido, enquanto meu pai hesitava entre um nome e outro, um fato histórico, uma data, sem admitir que estava ficando velho, com as lembranças meio que desordenadas. Seu testemunho não denotava tanto uma nostálgica saudade. Parece que aqueles personagens foram vistos hoje pela manhã descendo a rua, vestidos nos seus paletós de linho branco, com seus chapéus de massa comprados na loja de seu Mazu. Meu pai falava daquelas pessoas com uma espécie de esnobismo. Quase todos estão mortos, ele é um sobrevivente daquela geração de ouro.

Tentei levar a entrevista de acordo com o planejado, com perguntas em relação cronológica, conforme a ordem de ocorrência dos fatos. Um tanto desconcertado, acompanhava seus longos saltos, ligando figuras a episódios sem quase nenhuma ordem de distribuição no tempo.

Falávamos de futebol, sua e minha paixão. Dava para sentir o orgulho do velho cartola, uma das suas mais fortes identificações com a Itabaiana querida. Não gosta de falar de si mesmo. Modéstia que não impede o prazer de falar dos amigos e dos fatos passados. Entre as ocorrências mais importantes da história de nossa cidade nesses últimos 50 anos, lá está Arnaud Costa disponível para redigir o jornal, fundar o partido, organizar a escola de samba, erguer os alicerces do clube carnavalesco e promover o futebol. Nas horas vagas, defendia-se patrocinando a causa do amigo, do pobrezinho que não tinha advogado, como ótimo rábula que sempre foi.

No recuado ano de 1948, o mundo assistia a fundação do Estado de Israel; a tomada do poder na Checoslováquia pelos comunistas; a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos; o assassinato de Mahatma Ghandi, líder espiritual e dirigente da luta pela independência da Índia e a vitória do meu glorioso Botafogo Futebol e Regatas contra o Vasco da Gama por 3 a 1, diante de mais de 50 mil torcedores no Estádio de General Severiano, no Rio, na decisão do título carioca daquele ano. Em Itabaiana, reuniram-se os senhores Adonias Cabral, Olívio Luiz da Silva e João Cavalcante para organizar uma nova agremiação de futebol que recebeu o nome de União Esporte Clube.

Isso se deu no dia 20 de abril. Essa lembrança detonou um impulso instantâneo e irresistível na memória do meu pai. Não precisou formular nenhuma pergunta, ele já listava os nomes das pessoas envolvidas na fundação do time. O primeiro presidente foi Neco Frizo, um rapaz franzino que queria imitar Zé da Luz, declamando poemas de pé quebrado nas esquinas. Muito querido na sociedade de então, Manoel Leite de Melo, seu nome, foi aclamado para dirigir o novo esquadrão recém-nascido. De forma que chamou para ser o vice-presidente José Batista de Lucena, e para Presidente de Honra foi convocado um homem rico, o fazendeiro Arnaldo Maroja. Entre tantas incertezas diante do futuro de um time de futebol amador interiorano, é sempre bom garantir apoio financeiro para as horas de aperto. Para secretariar os trabalhos, por unanimidade foi escolhido o jornalista José Cecílio Batista Filho, redator do jornal oficial “A Folha” e político atuante. Como sócios benfeitores, constavam os nomes do oficial de cartório José Bandeira Júnior, José Dias Pacheco e o senador Rui Carneiro, grande líder da política naquela época. Para o cargo de técnico do time, foram chamar Antonio Bezerra Jácome nas fileiras das Forças Armadas, um cabo corneteiro que entendia de futebol, o afamado Cabo Totô, figura imortal da velha Itabaiana.

Esse acontecimento superou os demais naquele ano, para a sociedade itabaianense. Afinal, não era todo dia que se reuniam figuras de escol do quilate do jornalista Emerson Souto Camilo, o também jornalista Arnaud Costa, os comerciantes José Nunes Machado e João Luiz Freire, o prefeito da cidade, Luiz Paulino da Silva, os empresários José Aurélio da Costa, Sebastião Miranda e Severino Araújo, além dos líderes políticos Coronel João Luiz Freire, Dr. Ivon Rabelo, Dr. Antonio Batista Santiago e deputado Janduy Carneiro, anotados como os primeiros sócios beneméritos da nova associação de futebol itabaianense. Assim nasceu o União, rodeado da elite da cidade, apoiado pelos homens mais ricos do lugar e organizado pela fina flor da intelectualidade local.

Entre beneméritos, benfeitores, comissão fiscal e diretoria, houve uma espécie de similitude e harmonia entre as pessoas da elite local, no intuito de formar uma equipe de futebol forte e promissora. Meu pai foi o orador oficial da primeira diretoria. Anos depois, dirigiu o time por diversas vezes. Era, no meu entender, a maneira natural e lógica do viver do meu progenitor. Empenhava-se profundamente em tudo o que abraçava com entusiasmo e gosto intenso. Ao lembrar o seu União, ainda hoje os olhos do velho cartola ficam visivelmente molhados de lágrimas.

Parei a entrevista porque por um momento tive a impressão desconcertante de que meu pai interrompeu de forma brusca suas lembranças. Há muitos anos fora de sua terra natal, ele olhou para mim com solenidade: “Quando morrer, quero ser enterrado com a bandeira do meu União Esporte Clube”. Nem perguntou se o time ainda sobrevive ou se é apenas um conjunto de imagens felizes no seu pensamento de ancião.

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