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terça-feira, 4 de maio de 2010
Diálogo improvável
─ Você não tinha morrido?
─ Ah! Mas isso foi há muito tempo... Não há morte. A vida é contínua, ilimitada, eterna.
─ "Viver acaba nos fazendo morrer", bem disse o ator Paulo José. Considero a frase irretocável.
─ O destino ordenou que eu viesse lhe ver.
─ Pois é... Estamos todos velhos. Você, por exemplo, só não assistiu ao dilúvio porque não foi convidado, mas ainda pisou na lama.
─ Gracioso! Você, sempre de uma estupidez congênita. E onde anda Jacira?
─ Jacira, tão presente na minha saudade. Só tenho este retrato dela.
─ “O retrato é apenas uma mentira que as pessoas emolduram de verdade, com medo da velhice”.
─ Mas como vai você?
─ Eu vou às vezes bem, às vezes mal, conforme a lua. E você?
─ Continuo como fiel depositário das dores do mundo.
─ Verdade...
─ “O que é a verdade?”, perguntou Cristo a Pilatos.
─ Mas, Jacira? Tenho sonhos recorrentes com ela. Sonhos eróticos.
─ Sempre soube que ela foi sua amante.
─ Desejei-a muito, mas nunca adulterei com ela.
─ Quem olha uma mulher para desejá-la, já adulterou com ela em seu coração.
─ Fala como um pastor tradicionalista. Se não há um homem que não tenha olhado para uma mulher para desejá-la, então somos todos violadores da fidelidade conjugal. Penso que se desejo uma mulher, recai sobre mim o mesmo delito de a ter possuído.
─ É lógico. Assim, podemos todos nos entregar sem medo do inferno aos prazeres do sexo.
─ Reúna suas mais distantes lembranças para imaginar esses prazeres. É o que nos resta...
─ Jacira. Era uma mulher e tanto. Apenas um pouco insolente. A petulância daquela mulher lhe trouxe a antipatia de todos, menos a sua.
─ Gosto das mulheres prepotentes.
─ Acho que você a amava.
─ O amor, como a medicina, é tão somente a arte de ajudar a natureza. Não foi o nosso caso.
─ Um ciclo foi cumprido. Eu sou inferior a ela hierarquicamente na escala da humanidade.
─ O grande canalha Arnaldo Jabor garante que o amor “é uma bobagem inventada pelos poetas provençais do século XIII e traduzida pelos irmãos Campos”. Antes não havia amor, só sacanagem e sólidas amizades.
─ Isso é como sífilis: quando você acha que já foi embora, a coisa volta.
─ O amor é um barato que já foi legal, mas está superado. Há outros esportes mais modernos. Isso também é do Jabor.
─ Amigo, como desabou seu gosto literário!
─ Você nem sabe, mas sou autor de notáveis proezas sexagenárias! Tenho uma amante mais ou menos estável.
─ Vou considerar como verdade o que diz. A verdade tem muitos nomes e atende a quem chamar mais forte. No seu caso, a capacidade de evocar imagens do passado é admirável. E muito robusta.
─ Ironias à parte, pra aumentar meu cacife literário, cito Maciel Melo: “Não sei se morrendo vivo, mas sei que vivendo morro.”
─ Onde mora atualmente? Saiu do seu lugar naquele subúrbio?
─ Aquele lugar é muito grande, só cabe em mim. Meu universo pessoal. Foi lá onde conheci Jacira. Onde eu estiver, terei sempre meu universo, que independe do geral.
─ Eu moro entre flores, no campo santo. Gosto daqui. Não lhe dou meu endereço para evitar a aflição de esperar cartas.
─ Mas como é que é? Você já foi ou ainda é?
─ Tenho uma timidez que vai comigo ao túmulo. Nunca me declarei a ela. Hoje eu navego por instrumentos. O céu está nublado, acho que vai chover.
─ Acredito hoje nos fantasmas que me habitam. Vou embora, então. E levo o inabalável propósito de nunca mais voltar.
─ É uma coisa capaz de me enternecer: a prosódia dos mortos. Você fala bem. Eu vou gastando o meu latim para explicar a Jacira que estou falto de vida, mas pleno da arte de excitar as almas.
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