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sexta-feira, 14 de agosto de 2009
A MÃO QUE GOVERNA
A menininha chegou cedo para o primeiro dia de aula. Sentou timidazinha, com sua bolsa nova, roupa nova e medos também novos. Era frágil, e mais pequena ficou diante da professora imensa, de aspecto cruel. Teve uma estranha e arrepiante sensação de que aquela mulher seria catalisadora das piores taras, com sua potente régua, seu olhar duro e perverso.
Foi assim durante a aula e durante o ano: canhota, levava pancadas com a régua para aprender a escrever “direito”. Ao menor descuido na tentativa de usar a mão esquerda, lá vinha a professora por trás, de surpresa. Engolia o choro, transformava a angústia em desenhos, sua paixão. Aprendeu a escrever com a mão direita e a esconder seu sentimento de terror diante da abominável mulher com a régua na mão.
A professora continuou lá, sempre presente ao longo de sua vida. Ainda que às vezes quase imperceptível. Naqueles tempos de verdes começos, escrever com a mão direita envolveu um longo aprendizado, não só de caligrafia. A menininha, por natureza rebelde e criativa, aprendeu a aparentar timidez e conformismo. Deu-se conta de que sua mão direita poderia escrever longas cartas, mas só a canhota seria capaz de criar algo conciso, simples e bem amarrado, como sua personalidade. Em poucas linhas.
A mão esquerda já construía seu mundo por si própria. Escondida da professora, a menininha potencializava suas narrativas visuais, com a força e a energia da esquerda. Ocasionalmente, a pequena fazia malabarismo, escrevendo com as duas mãos simultaneamente. Com a direita, o desafio de escrever os exercícios da escola. Com a esquerda, desenhava estórias em quadrinhos. Essa dobradinha, tarefa mágica, resultava na combinação equilibrada do seu modo de encarar o mundo, entre a resistência ao fascismo e as aquarelas coloridas de sua alma de artista.
Seja como for, a menininha cresceu, saiu da escola opressora, assumindo-se como ambidestra. Em busca de sua identidade, lançou mão da estratégia de driblar as mãos de ferro, persistindo sempre, usando sua mão esquerda ao lidar com a realidade, sem histeria. Como um observador distante, a mão direita, nessas horas, tinha uma postura de contemplação e consentimento. Não podia fazer nada diante da arte de sobrevivência explícita.
O impacto: um dia a mão esquerda fugiu ao controle da menina-moça, como uma espécie de prisioneiro que de repente se vê livre. O mundo, de uma forma geral, foge ao nosso controle nessa etapa da vida. A mão direita flagrou seu par, a canhota, para além dos gestos normais dos movimentos cotidianos. Pela primeira vez, a mão direita da menina-moça sentiu-se isolada num estranho mundo de sensações lúbricas. A mão esquerda acabava de descobrir o “Amor Veneris”, o órgão que governa o prazer nas mulheres. E com a descoberta, veio a reflexão sobre o poder. A mulher se descobrindo sexualmente. Descobrindo o clitóris, a mão esquerda teve, enfim, o controle do gozo da menina-moça. A descoberta foi tão importante que a mão direita quedou-se humilhada e teve um surpreendente movimento retroativo: “Quando por algum motivo preciso escrever com ela, a letrinha é exatamente igual àquela que ficou lá atrás, num período cinzento da minha infância”.
A mão direita gosta de se refugiar no passado e se apoiar em ícones, heróis ordinários e falsos protetores. A esquerda é sua versão mais nobre e corajosa. Elas se combinam, num jogo reiterado entre realidade e ficção, fuga e acomodação. O ponto X da questão passa longe do ponto G. É gozar e fazer gozar com a mão “que afaga e que apedreja”.
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