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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

BALULA – UM CONTESTADOR CORDIAL

Fábio Mozart

Morreu João Balula, homem de teatro, bailarino, militante do movimento negro em João Pessoa, criatura estimada pelos que tiveram o prazer de sua convivência. Balula foi um suave contestador, firme em suas posições, intransigente na defesa dos direitos das minorias, mas uma figura doce, um pensamento de verniz esquerdista com um temperamento cordial.

Foi presidente da Federação Paraibana de Teatro Amador, organização onde militei nos idos de 70, que tentava dar um rumo decente às artes cênicas paraibanas. Penteados afros, looks coloridos inspirados em vestes africanas davam o tom do visual do nosso Balula, orgulhoso de sua procedência étnica e de sua preferência sexual. Quem avistava pela primeira vez aquela “figura exótica” não recebia de imediato boa impressão, nos moldes desse mundo “certinho” onde todo mundo, para ser “normal”, deve se vestir e proceder como a maioria. Balula fazia questão de impactar, expressando cepticismo e dúvida quanto à justeza dessa sociedade hipócrita. Os medíocres de todas as tendências torciam o nariz para João Balula, que não correspondia aos padrões “normais”.

No cenário meio brega meio tribal da cultura paraibana, Balula impunha respeito pelas suas posições e por viver aquilo que pregava, ou seja, a liberdade total para seus semelhantes. Foi um anarquista nas suas pequenas e grandes atitudes, um guerrilheiro da arte verdadeira, que é aquela vivenciada por homens e mulheres não adeptos do mercantilismo no fazer artístico, os audaciosos que afrontam o capitalismo tentando fazer arte e cultura sem dar muita bola à lógica do mercado. Por isso Balula morreu pobre, mas seu espírito criativo e honesto certamente estará vagando pelas portas do céu, reclamando sistema de cotas para negros no paraíso dos artistas, porque “os direitos dos negros não podem esperar mais”.

Um comentário:

  1. NATAL DOS SEVERINOS

    Fábio Mozart

    No natal de 1925, na cidade de Itabaiana, Província da Paraíba, um rapaz magro e feio vestiu seu paletó de linho branco, apanhou o chapéu de palhinha e ajustou a gravata, antes de tirar do bolso o papel com o discurso que iria pronunciar na sessão especial da União dos Artistas e Operários, um clube operário que reunia a nata dos intelectuais da terra. O rapaz tinha 21 anos apenas, mas já mostrava tendência para as artes literárias, além de apresentar bom desempenho na alfaiataria do seu pai.

    O rapaz tomou o bonde puxado a burro e desceu em frente à sede da União dos Artistas, onde ficou olhando o emblema do esquadro e compasso no frontispício do bonito prédio da sociedade operária, e pensando no impacto que seu discurso iria causar na platéia que já se formava no salão principal. Teve a audácia de escrever o discurso em versos imitando a poesia dos improvisadores sertanejos. Essa idéia veio quando leu um livro de um poeta chamado Catulo da Paixão Cearense. Acendeu um cigarro e foi cumprimentado por outro jovem, o aprendiz de oficial de sapataria Daciano Lima, que vinha à frente da banda de música sob a batuta do maestro Neco Araújo.

    A orquestra passou tocando seus dobrados, anunciando a retreta no coreto da pracinha, atraindo dezenas de populares, entre eles um jovem albino, encantado com as notas musicais da 24 de Maio, ele mesmo um músico promissor, tocador de concertina e foles de oito baixos. O jovem albino trazia às costas seu instrumento, contratado que foi para tocar um baile naquela noite natalina, sempre pensando no dia em que iria tocar na Banda Santa Cecília e, mais tarde, até mesmo, quem sabe, fazer parte daquele sonho que se chamava rádio.

    Atrás da banda, ia também outro rapaz cantarolando os choros e maxixes executados pelos músicos. Ele morava no Recife por essa época, e veio passar Natal em sua terra. Na capital pernambucana, esse moço itabaianense encontrou-se com um tal de José Luiz Rodrigues Calazans, alagoano de Maceió. Conheceram-se nas rodas artísticas do Recife e estavam pensando em formar uma dupla sertaneja.

    O jovem poeta declamou seu trabalho e foi bastante aplaudido. Saiu da sessão suando muito e com as pernas bambas, da emoção de ter recitado em voz alta aqueles versos duros e secos como o leito do rio Paraíba quando a chuva tardava. Tomou outra vez o bondinho e desceu em frente à igreja, onde estava instalado o carrocel de Possidônio, com a meninada em volta do brinquedo, e os mais velhos tomando gasosa, esperando a missa do Galo. Como faltavam mais de duas horas para a missa, o poeta resolveu passar nos pastoris e lapinhas armados por toda a cidade. Na Rua da Flor, parou para ver a função do pastoril profano de dona Rubina, conhecida como "Boi de Bico". Ele ficou parado em meio à multidão, maravilhado com as canções e o bailado das pastoras, a Contra Mestra, a Diana, o Anjo, a Cigana e todas as meninas que tocavam seus pandeiros com graça. O poeta imaginou estrofes de poemas exaltando aquela expressão da cultura popular de sua terra, e esboçou ali mesmo, no papel do discurso, uns versinhos falando do pastoril profano de Rubina em plena noite de Natal de Itabaiana.

    O rapaz albino também se envolveu com pastoril naquela noite, contratado que foi para fazer parte da orquestra da lapinha cristã de dona Amélia, armada na Rua Cônego Tranquilino. Ele passou a noite tocando para os cordões azul e encarnado, de vez em quando improvisando em cima dos motivos natalinos, acompanhando o diálogo cênico com uma certa virtuose que já anunciava um gênio da música.

    O outro músico, o que morava no Recife, encontrou-se com Pingolença, um rapaz famoso por mexer em quase tudo, e gostar de uma boemia. Pingolença estava tomando uns traçados na Rua do Carritel. Ele contou que estava montando um circo por nome "Grande Circo Central", onde era o proprietário, empresário, palhaço e trapezista, além de mágico e propagandista. Convidado para fazer parte do elenco do circo, o rapaz que morava no Recife disse a Pingolença que estava com idéia de se juntar a outro camarada e formar uma dupla sertaneja, até gravar um disco com músicas de sua autoria, já que era compositor e tocador de saxofone.

    Na missa do Galo, os três rapazes por acaso se encontraram naquele Natal mágico da velha Itabaiana. O poeta chamava-se Severino de Andrade Silva, que mais tarde seria conhecido por Zé da Luz, um dos principais poetas populares do Brasil. O rapaz albino também atendia por Severino Dias de Oliveira, conhecido por Sivuca desde os 15 anos, que anos depois seria consagrado como um dos músicos mais brilhantes do país, correndo o mundo solando sua sanfona. Já o terceiro Severino assinava Severino Rangel de Carvalho, depois conhecido como o Ratinho da dupla Jararaca e Ratinho, considerada a dupla sertaneja do século.

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